Uma história sobre obcecar para não sentir
Antes de fazer 30 anos decidi que tinha de mudar, percebi que por mais que fugisse, não ia conseguir fugir de mim mesmo.
Eu vivi durante muito tempo um paradoxo, sentia-me mal em sítios fechados, sentia-me preso, com falta de ar, o coração subia-me pela garganta e tinha que ir apanhar ar. Quando sentia isto mais fortemente ia até ao campo, ao cimo dos montes ou até à maior praia que encontrasse para não ter paredes à volta. Mas isso começou também a ser um problema porque tinha que ficar apenas tempo suficiente para acalmar, se eu ficasse muito tempo lá começava a sentir medo, medo que o carro avariasse e eu não tivesse como voltar, medo que me assaltassem e que ficasse perdido por ali sem saber como voltar, sentia-me preso de outra forma. Quando isso acontecia eu tinha que voltar para casa e desligar tudo até conseguir regular a respiração. Depois começava: verificava todas as janelas, a porta, verificava que estava tudo trancado, verificava que nada ia pegar fogo na cozinha, sentava-me e contava até 10, verificava tudo outra vez, sentava-me e contava até 20. Fazia isto vezes suficientes até chegar a contar até 100. Mas tinha que fazer tudo de seguida, se não fizesse recomeçava do início. Costumava chegar ao fim exausto.
Das primeiras vezes que fiquei assim reagi razoavelmente, mudei de cidade, aliás mudei sempre de cidade quando isto começava a acontecer frequentemente. No início não liguei muito, mas depois comecei a perceber que tinha um problema, mas achava que não havia resposta para mim. Então tinha claustrofobia e agorafobia ao mesmo tempo? E quem é que me podia ajudar se eu estava sempre a mudar de cidade?
O meu trabalho permitia-me fazer isto. Sou informático, tenho formação em marketing e programação. Trabalho remotamente.
Eu precisava de ajuda, mas a medicação não me resolvia a questão. Fui a alguns terapeutas, mas diziam que eu tinha de os ver todas as semanas e eu não queria. Não queria estar fechado com alguém a falar disto e além disso não queria ficar preso numa só cidade.
Consegui começar a ser acompanhado por um psicólogo que fazia as consultas online, pelo PC ou pelo telemóvel, em videochamada. Assim podia manter todas as semanas, sem ter que estar fechado num sítio com ele, nem ficar preso num só sítio. Fiquei muito aliviado.
Claro que isso foi no início, antes de começarmos a tocar nos assuntos pesados. Aí eu quis fugir muitas vezes, cortei a ligação a meio de algumas consultas, mas ele dizia-me sempre que estava lá para continuarmos na semana seguinte. Não foi fácil, mas fui encaixando que para mim esta era a melhor hipótese.
Varri muita coisa para debaixo do tapete ao longo dos anos, quando a levantei vi muitas coisas que pensava ter esquecido. Andei tanto tempo a pensar em sintomas, a medir a pulsação, etc., que já nem me lembrava dela… ela, a minha tia. Afinal nunca me esqueci dela, enterrei-a no mesmo sítio onde enterrei todas as outras coisas que não percebia. Quando a reencontrei nas minhas memórias chorei este mundo e o outro, pensava que ia ser demais, toda aquela dor, mas depois, como quem não quer a coisa, ele perguntava-me se eu tinha trancado a porta e eu respondia que não sabia, mas que não era importante. Mais tarde à noite eu percebia que chorar aquela dor fazia-me preocupar menos com as minhas obsessões… comecei a entender.
Então vá… a minha história:
Eu cresci ali ao lado de onde judas perdeu as botas, na santa terrinha no meio do nada. Uma vila pequena sem nada para fazer além de ir à escola. Hoje acho que já tem internet, mas quando eu era miúdo não havia nada, pelo menos para mim. Os meus pais são pessoas simples, de confiança, estáveis, como se gosta naquela vila. Para mim era como se eu fosse de outro planeta, ou de outra espécie. Em miúdo acho que lhes fiz vida negra, eles não estavam à espera que eu nascesse, aliás os meus irmãos são 10 anos mais velhos que eu.
Em miúdo, até ali aos 8 anos acho que estive ok, ou pelo menos não me lembro de ter estado mal. Lembro-me só que brincava muito sozinho quando estava em casa.
Depois, na adolescência ficou pior. Comecei por me interessar por muitas das coisas que se falavam na escola, depois queria ir à biblioteca saber mais, os meus pais diziam sim, senhor, isso é bom, mas não tinham qualquer interesse nos temas. Deixavam-me falar sobre os assuntos, mas nunca tinham nada a acrescentar. Ficava a sentir-me envergonhado por falar sozinho tanto tempo…
Mas tinha a minha tia. Desde sempre tinha a minha tia. Ela era actriz do teatro, andava sempre de um lado para o outro. Morava uns tempos aqui, uma temporada ali. Mas visitava sempre nos meus anos e no natal. Em criança eu adorava as visitas, ela brincava o dia todo comigo. Depois, na adolescência, ela abria-me os horizontes, fazia-me sonhar, interessava-se por tudo o que eu dizia. Eu queria ir de viagem com ela assim que tivesse idade.
A minha mãe falava sempre mal “daquela vida” que a minha tia levava. Não achava próprio, não queria que ela me enchesse a cabeça com ideias tolas. Mas recebia-a sempre, nem que fosse para discutirem. Eu às vezes sentia-me mal por gostar tanto dela, se ela tinha uma vida pouco própria (eu não sabia porque é que a minha mãe dizia isso).
Depois, tinha eu 16 anos, tinha terminado um namoro com uma miúda porque ela dizia que eu era muito estranho. Andava mal. A minha tia teve um acidente automóvel e faleceu.
Eu fiquei arrasado. Senti-me muito triste, mas também me senti egoísta por sentir que ela era mais para mim do que para os outros, senti-me egoísta por precisar dela, como se eu fosse um interesseiro, não sabia se podia ficar tão triste por ela ou não. A minha mãe dizer que aquilo foi culpa da vida que ela levava, sempre a viajar, também não ajudou.
Perdi então o contraponto daquela vida campestre, sem esperança, isolado do resto do mundo.
Deprimi. Fui criticado por estar a ser “um dramático”. Empurrei para baixo.
Um tempo depois comecei com os meus rituais de verificação, portas, janelas, armários. Sentia-me preso dentro de casa. Sentia-me preso na rua. Andava obcecado com ter que deixar tudo trancado, não fosse alguém roubar-me alguma coisa (já me tinham tirado a minha tia).
Quando fui para a faculdade melhorei, fui para a cidade.
Quando estava a terminar o curso começou a voltar, portas… sempre as portas.
Percebi que melhorei por mudar de sítio, por isso mudei para outra cidade, depois outra, depois outro país… até perceber que este demónio vinha sempre dentro de mim.
Quando comecei a falar, a por cá fora tudo o que esteve fechado tantos anos, consegui finalmente perceber a ligação entre os meus medos e as minhas dores. Comecei a perceber como a claustrofobia nada mais era que o medo antigo de ficar preso num lugar onde não pertencia, onde me sentia a enlouquecer, a agorafobia era o mesmo, porque onde cresci há imensos espaços abertos. As verificações nasceram da minha necessidade de controlar a dor, controlar aquilo que sentia e aguentar… aguentar mais um dia, mais um mês, mais um ano até poder sair dali.
Consegui finalmente libertar-me destes fantasmas que carregava, consegui chorar as minhas perdas e dores. Consegui fazer as pazes.
Agora faço uma coisa que nunca pensei que faria: eu visito os meus pais, afinal até gosto deles e de visitar aquela vila agora que me libertei das partes da minha história que me prendiam!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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