Uma história sobre a banalidade da injustiça
Eu sou… eu sou… estou ainda a decidir o que sou. Eu fui uma mulher, esposa, mãe e trabalhadora sob o peso de algo que já não aceito, algo que já não me faz sentido. Onde é que isso me deixa agora? Ainda estou a descobrir.
42 anos. Uma altura tão boa como outra qualquer para aprender.
Eu sou mulher, por isso já fui criança, já fui miúda, já fui jovem (creio que voltei a ser). Em todas essas idades eu aprendi, de entre as muitas coisas que se aprendem na vida, que ser mulher implica ter certos cuidados, que há um conjunto de perigos que não podem ser ignorados.
Aprendi que os rapazes estão menos sujeitos a esses perigos, aprendi que as nódoas negras num rapaz nunca seriam tão graves como as feridas que uma rapariga podia sofrer.
Em miúda comecei a aprender que devia evitar passar à porta de certos cafés, que os homens habituais desses espaços poderiam ser muito ofensivos ou pior. A minha mãe explicava-me que não devia pedir ajuda aos polícias que eu via nesses cafés se estivesse sozinha. Com o passar do tempo percebi a sensatez desses conselhos. Em adolescente aprendi que os rapazes de quem gostava eram tímidos e aqueles de quem não gostava eram chatos, “colas”, irritantes e insistentes. Chegavam a ser assustadores, seguiam-me, também seguiam as minhas colegas.
Que rapariga nunca recebeu telefonemas estranhos?
Aprendi a evitá-los ou a pedir ajuda a amigos.
Aprendi a ter bom senso.
Ao longo dos anos este tipo de coisas foi acontecendo aqui e ali. Em adulta, no escritório fui tendo colegas, este ou aquele que achava que devia “atirar o barro à parede, para ver colava”, mensagens aqui, comentários inapropriados ali. Aprendi a nem responder. Para quê? Lembro-me de dizer a um “eu tenho marido e filhos” e a resposta foi “não faz mal, eles não precisam de saber”. Tive uma colega, miúda, coitada envolveu-se com um colega e passado uns tempos com outro. Passou a ter fama…, mas pronto, estas coisas são assim, “ela já devia saber.”
As minhas colegas não ligavam a isto, aprendi também a não ligar. Os homens são assim, o que é que se há de fazer? Não é? Uma delas às vezes andava de óculos de sol em dias nublados, mas isso era com ela.
Quando a minha filha foi chegando à adolescência, tentei ensiná-la a saber proteger-se destas situações. Ela foi aprendendo, graças a Deus, mas nunca aceitou que devia ser assim. Moía-me o juízo, dizia que assim não era justo, que as mulheres não podiam ser tratadas assim, que era um país livre, e tantas outras coisas verdadeiras a que eu não conseguia responder muito bem sem encolher os ombros…
Com os anos ela foi ficando mais zangada com isto. Eu não sabia o que fazer com ela. Tinha medo que ela se pusesse em perigo.
Fui fazendo a minha vida, com as contas para pagar, as preocupações normais de uma família com avós e tios, a saúde dos mais velhos, coisas da vida.
Comecei a ver e a ouvir notícias sobre mulheres famosas que se chegaram à frente para denunciar situações de abuso. Actrizes que acusavam produtores de se aproveitarem dos seus cargos para fazer avanços impróprios. As primeiras foram quase ignoradas, mas depois houve mais e mais… surgiu aquela coisa do #meetoo… com mulheres de todo o mundo a denunciar situações que tinham passado, comecei a achar que era demais, não podia ser tanto… podia?
Uma noite, a ver o telejornal com o meu marido, estavam a falar destas denúncias todas que estavam a surgir. Apareceu uma mulher de um dos partidos políticos a falar sobre esta questão.
Ela defendia que a legislação devia ser actualizada, melhorada para proteger os direitos das mulheres nestas situações, que as mulheres tinham o direito de se defender, etc., achei que era um bom discurso.
O meu marido comentou: “lá está esta parva com a mania que sabe.”
Ora, se calhar ele nem estava a prestar atenção (tava meio a olhar para o telemóvel), se calhar disse aquilo só porque não gosta daquele partido, mas para mim acho que foi a gota d´água.
Dentro de mim partiu-se qualquer coisa, talvez o último bocadinho da ilusão. Fui “devorada” por uma fúria que não sei descrever, fiquei com a pele a escaldar, a garganta a arder como fogo, queria matar alguém, desatei a gritar com ele, nem sei o que é que estava a dizer.
A minha filha veio a correr, conseguiu acalmar-me entre gritos e abanões. Levaram-me para o hospital. Lá disseram-me que tinha tido um ataque de pânico, eu sabia que não era isso.
Nas semanas seguintes isolei-me, não queria lidar com nada. Fui para uma casa que a minha irmã tem, fiquei lá umas semanas sozinha, ia e vinha do trabalho para lá.
As pessoas ficaram muito preocupadas comigo, eu não estava capaz de aturá-las.
A minha filha foi ver-me, numa das visitas, no meio de uma conversa eu confrontei-a “Não era isto que querias? Não estavas sempre a dizer-me que eu era demasiado passiva?”. Ela respondeu-me sem pestanejar “Continuas passiva, só que agora tás zangada.”
Não falámos mais nesse dia.
Percebi que não podia continuar assim. Procurei a ajuda de um psicólogo homem, achei que assim podia descarregar nele toda esta zanga, voltei para casa.
E sim, descarreguei muita raiva naquelas sessões, foi muito importante para mim. À medida que a zanga foi diminuindo, comecei a encontrar sentido em muitas coisas.
A minha mentira era esta, que há verdadeira igualdade entre homens e mulheres. Mas quantas mentiras não são vividas todos os dias? Desde pessoas que trabalham em empresas que odeiam porque não se identificam com os valores da empresa, pessoas que seguem carreiras para agradar às famílias, casais que se mantêm juntos pela memória de um tempo mais feliz, tantas… a minha foi esta.
Em primeiro lugar tive que aceitar que por mais furiosa que estivesse, isso por si não ia mudar nada. Em segundo aceitei que a minha fúria só ia destruir o que eu tinha se eu assim o quisesse, consegui amenizar a vida familiar, voltei a sentir segurança na minha casa.
Depois comecei a pensar em mudanças reais. Tornei-me militante daquele tal partido, no emprego já ninguém me falta ao respeito. Houve um colega que achou por bem meter-se comigo, eu disse-lhe para dizer isso enquanto o filmava, ele arrogantemente aceitou. Ficou em choque quando partilhei nas redes sociais. Algumas pessoas zangaram-se comigo, muitas outras aplaudiram discretamente. Mais de 500 anos desde a Joana D´Arc e eu vou aturar isto? Não! Não consigo compactuar com isto e fingir que está tudo bem.
Se hoje em dia estou em paz? Não! Mas não quero estar, quero canalizar toda esta revolta que passei uma vida a aceitar como normal, quero focar-me, quero fazer a diferença, ter um propósito.
Estou muito satisfeita por estar zangada! Quero continuar assim enquanto tiver que ser. Assim durmo em paz, assim sou eu! Assim sou um exemplo para a minha filha!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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Michael Dickinson