Uma história sobre o burnout por amor à camisola
Hoje vejo as coisas de forma diferente, estou reformado, o trabalho já está feito, já não acordo com suores frios a pensar no que deixei por fazer durante o dia.
Eu sei que sou de outro tempo, que muitas coisas hoje em dia são diferentes, mas uma coisa garanto, e digo isto a muitos jovens com quem falo: se numa empresa dizem que têm de ter “amor à camisola”, saiam. Virem costas e vão-se embora!
Se uma empresa precisa de dizer aos empregados para se dedicarem mais, então vem aí bronca. Vêm aí horas extraordinárias não pagas, vêm aí aniversários dos filhos sem pais, vêm aí olhares pesados à noite em casa entre casais, vem aí a frustração de não saber quando é que as coisas melhoram, nem tão pouco ter energia para procurar coisas melhores.
Digo isto porque vivi-o na pele, digo isto porque vi muitas pessoas a viverem-no na pele.
Como digo, sou de outro tempo. Eu mudei-me para Lisboa quando tinha 13 anos, antes disso vivia com os meus pais e os meus irmãos no campo. Quando me vim embora, foi meio sair de casa, foi meio fugir. Precisavam de mim no campo, eu não queria.
Hoje em dia há quem se queixe da falta de liberdade, mas sei que hoje em dia durmo sem medo de ver a polícia entrar casa adentro a meio da noite porque um qualquer vizinho rancoroso disse que alguém naquela casa era comuna.
Em Lisboa fui trabalhar para uma loja na Baixa. Naquela época só existiam duas lojas daquelas, concorriam uma com a outra. Os donos desta loja já trabalhavam nisto há algum tempo. Trataram-me muito bem, foi esse trabalho que me permitiu alugar um quarto, depois um apartamento. Permitiu-me vestir-me bem, podia ter 3 pares de sapatos!
Foi a trabalhar naquela loja que eu conheci a minha mulher. A mãe dela era cliente lá da loja, às vezes levava a filha.
Fomos trocando olhares ao longo de um ano antes de eu ter coragem para falar com ela.
Foi para aquela loja que ligaram para me avisar que a minha mulher estava a caminho do hospital para ter o nosso primeiro filho. Deixaram-me ir ter com ela, claro, deram-me logo os dias para ficar com ela, nunca se colocou em questão. Naquele tempo podiam ter dito que não.
Naquela loja eu sentia-me em casa, sempre me trataram bem, com respeito, pagavam justamente e a horas. Estava preparado para ficar lá até me reformar.
Houve uma altura em que o dono da loja, ele e a sua mulher geriam a loja, ficou doente. Uma pneumonia. Ficou de baixa bastante tempo e acabou por não voltar, não se sentia capaz e explicou que já andava a pensar em retirar-se há algum tempo.
A sua mulher ficou à frente da loja durante 1 ano, no final decidiu que não queria continuar, estava cansada e sem o marido não fazia sentido. Tinham poupanças mais que suficientes.
Não tinham filhos. Acabou por vir um sobrinho de fora para assumir a gestão da loja.
No início parecia que ia correr bem, ele portou-se bem, continuou o trabalho dos tios.
Ao fim de um ano ele sentia-se confiante na gestão da loja. Começaram as mudanças. Coisa pequenas no início, começou a contabilizar tudo o que fazíamos, queria que apontássemos tudo. Eu tentei explicar-lhe que não era preciso, que fazíamos assim há muitos anos. Ele ficou em silêncio a olhar para mim e depois disse-me que agora ia ser assim.
É muito chato ouvir um puto 30 anos mais novo do que nós a dizer uma coisa dessas, mas os meus patrões entenderam que ele devia ficar a gerir a loja, aceitei.
Tinha que ficar mais uns minutos todos os dias a apontar as coisas, até que me habituei. Quando nos habituámos ele arranjou mais tarefas, coisas que tinham de ser feitas. Começámos a passar mais tempo na loja depois do horário habitual.
Pensou-se que ele ia pagar essas horas extra, nunca tínhamos tido que fazer horas extra.
Não pagou. Disse que nós é que tínhamos que aprender a trabalhar mais depressa.
Ao fim de pouco tempo um rapazito que tinha entrado há pouco tempo despediu-se. Ficámos muito incomodados, nunca ninguém se tinha despedido assim dali.
Pensámos que entraria mais alguém, não entrou. Começou a ser-nos exigido que compensássemos a falta desse colega. Começou a haver mau ambiente na loja, os mês colegas deixaram de rir uns com os outros. O novo chefe começou a implicar com um dos meus colegas, começou a comentar com os outros que aquele colega estava a atrasar toda a gente.
Esse meu colega quando percebeu isso começou a desleixar-se no trabalho, acabou por virar algumas pessoas contra ele. Um dia já não apareceu na loja. Alguns dos meus outros colegas ficaram contentes. Palermas! Ficámos com mais trabalho.
Começámos a ouvir falar sobre como tínhamos de “vestir a camisola”, defender a loja. Que eram tempos difíceis, que assim não ia dar.
Toda a minha vida eu tinha defendido aquela loja, quem era este miúdo para me exigir isso agora?
A situação foi ficando cada vez mais grave. A minha mulher começou a queixar-me muito, começámos a discutir. Comecei a não querer ir para casa ao fim do dia por causa das discussões.
Eu insistia que tinha de ser, tinha de fazer isto pelos meus patrões, ela respondia a dizer que já não eram eles, que era um fedelho qualquer. Eu insistia que eram família.
Andámos nisto até que deixei de dormir. Acabei por ir para o hospital, perceberam que era uma perturbação ansiosa severa, com ramificações somáticas. Não sabia o que isso queria dizer, não me explicaram.
Uma prima explicou à minha mulher que o marido dela tinha tido o mesmo, fui ver o mesmo psicólogo que esse senhor.
Foi a coisa mais importante que fiz.
Eu não conseguia lidar com a culpa de querer sair da loja, não conseguia perdoar-me por falhar aos meus antigos patrões, não conseguia largar o sítio onde cresci como homem e onde fui sempre feliz.
Com a ajuda das consultas consegui perceber que estava preso a uma coisa que já não existia. Consegui ganhar a coragem de ir falar com os meus antigos chefes, percebi que eles já se tinham desligado da loja, que por eles esse assunto fazia parte do passado.
Consegui libertar-me de um sentimento de obrigação que eu criei sozinho e que este novo patrão usava para me explorar e até para me pagar menos!!
Despedi-me e fui trabalhar para a concorrência, aceitaram-me de imediato, já me conheciam, claro.
O miúdo ficou-me com ódio, ainda bem! Fiquei feliz por isso!
Continuei na concorrência até me reformar, foi a melhor coisa que fiz.
O que aprendi: não façam nada por “amor à camisola”, façam por amor a vocês próprios, por amor às vossas famílias. Se a loja não vos valoriza, saiam. Há mais lojas.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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