A guerra entre a confortável solidão e o desejo de viver
“Homem vê-se confrontado com a sua incapacidade em interessar-se pelos outros!” – Podia ser o título da minha história.
Eu nunca me achei tímido, apesar de muitas vezes as pessoas me dizerem que sou. Tímido para mim é aquela pessoa que quer ir falar com alguém ou um grupo e tem vergonha de o fazer.
Comigo não era isso, comigo era mais do género de não ter vontade, nem interesse em ir falar com esta ou aquela pessoa. Quando eu precisava, conseguia abordar quem precisasse, mas a maior parte do tempo eu não queria, nem tinha interesse. Sentia-me bem como estava.
Desde sempre que há revistas cor-de-rosa, sobre a vida dos famosos, notícias sobre a vida deste ou daquele indivíduo sem interesse para além de serem famosos, nunca percebi o fascínio. Nas redes sociais não entendia muito bem quando alguém tinha centenas, senão milhares de reacções a uma foto do seu jantar ou alguma selfie mais engraçada.
Até aos 20 e poucos anos de idade isto foi OK. Tinha um grupo pequeno de amigos, dava-me com os meus colegas, tive uma ou outra namorada, pronto, tranquilo, não precisava de mudar.
Mas nada dura.
Uns amigos meus casaram-se, outros emigraram, outros fecharam-se mais nas suas vidas.
Comecei a não ter companhia. Vivia sozinho. Comecei a perceber que muitas das actividades de que eu gostava que não tinham interesse sem companhia. Não foi imediato, mas aos poucos percebi que me sentia sozinho. Pela primeira vez na minha vida senti que devia ir conhecer mais pessoas.
Experimentei grupos nas redes sociais, daqueles que se formam à volta de temas. Percebi que não tinha vontade nenhuma de falar com as pessoas ali, a maior parte ia lá mandar umas postas de pescada e sair.
Experimentei aplicações de encontros, para conhecer alguma mulher interessante, consegui marcar alguns encontros, às vezes os encontros acabavam bem. Mas eu não conseguia transformar em relação, não conseguia ter interesse para além do físico.
Comecei a sentir-me muito confuso, sem perceber o que se passava. Porque é que eu não tinha interesse nas pessoas? Porque é que me sentia sozinho se não tinha interesse?
Um problema só existe quando é identificado, não é?
Andei 3 anos às aranhas comigo mesmo, sem saber o que havia de fazer e a sentir-me pior. Um amigo recomendou-me uma consulta. Marquei. Quando lá cheguei achei estranho ser uma consulta de psicologia, achava que devia ser neurologia.
Afinal estava certo.
Não me apercebi logo, mas nas primeiras 4 consultas, em que me fui apresentando e explicando a minha história e o meu problema, parece que passei 90% do tempo a falar da minha mãe. Foi um bocado estranho ser confrontado com isso. Eu estava a tentar falar de mim, as perguntas eram abertas, não fui direcionado para nenhum tema…, no entanto era dela que falava.
Lembro-me de ser miúdo, de vir para casa com bons resultados da escola, um desenho que tinha feito, mais tarde boas notas nos testes. As respostas eram sempre algo como: “És a melhor coisa que eu já fiz!”; “Claro que tiveste boas notas, és meu filho!”; “Isso não é surpresa nenhuma, eu já sabia que eras capaz!”.
Nunca havia um elogio que não fosse de algum modo sobre ela. Na adolescência as minhas notas eram comunicadas pelos professores, eu deixei de o fazer. Não me lembrava de ter feito isso até começar a falar em terapia.
Quando penso nisso, em miúdo a minha mãe pedia-me muitos, muitos beijinhos. Nada de especial, mas lembro-me que não me dava muitos em troca. Acho que não pensava muito nisso na altura, mas hoje ocorre-me que foi estranho.
Mais tarde, em adolescente, ela fazia-me muitas, mas muitas perguntas sobre a minha vida social. Se eu não respondesse, se evitasse responder, ela ficava chateada, dizia que eu estava a excluí-la da minha vida, dizia que eu não queria saber dela.
Quase tudo o que eu fazia era de algum modo apropriado por ela, se eu tinha algum interesse novo ela dizia-me que isso era porque ela sempre gostou disso, e passava a dizer a todos que tinha esse interesse, ficando eu para segundo plano.
Isto nunca foi feito de forma agressiva, era só a maneira de ela ser. Há milhares de pequenos exemplos de que comecei a lembrar-me quando comecei a falar. O que importa disto?
Importa que aprendi a fechar-me. Se algo era meu, guardava-o como um segredo, isolava-me.
Perdi o interesse pela partilha dos meus interesses. Não foi de propósito, aconteceu. Agora percebo que era para manter as coisas “minhas”, para ter crédito pela minha própria vida.
Os amigos que tinha eram bons amigos, mas eram amigos com quem não havia conflito, não havia diferenças de opinião, gostávamos todos mais ou menos do mesmo, sem atritos. Não admira que o grupo não tenha sobrevivido à passagem do tempo.
Foi nisto que eu perdi o interesse pelas pessoas. Não era rancor, não era medo nem zanga, era só um desinteresse. O mesmo desinteresse que aprendi a ter pela partilha com a minha mãe. Eu não queria conhecer pessoas novas porque parte de mim podia deixar de ser meu/eu. Eu sei, parece conversa maluca, mas era isso que estava lá por baixo das camadas todas.
Foi na terapia que eu tive a primeira relação humana, sincera, que não me tirou nada, apenas deu. Foi um serviço, ao final de contas.
Enquanto estava na terapia comecei a praticar desporto, comecei a fazer surf. Até fiz uns amigos. Conheci uma rapariga nova através de uma aplicação de encontros, entendemo-nos bastante bem. Hoje continuamos a namorar, está a ser muito bom. A melhor parte é que ela não gosta de surf, nem sequer gosta dos mesmos filmes que eu e isso não faz mal!
Nunca pensei sentir-me assim tão livre.
Não sou o rei da festa, não sou a pessoa mais extrovertida que irão conhecer, mas já posso gostar de pessoas! Já consigo estar com pessoas diferentes de mim sem perder logo o interesse! Tem sido um alívio continuar a ser eu mesmo!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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