Uma história sobre culpar os outros
Sabes aquelas pessoas que não contam o tempo em anos? Não dizem “ah isso foi em 2012” ou “lembro-me disso, foi em 2009”. O que dizem é “ah isso foi quando eu tava a namorar com a Carolina” ou “ah sim, isso foi quando eu tava com a Teresa”.
Eu era assim. É uma coisa estranha porque nunca me tinha apercebido que fazia isso, só percebi quando alguém me disse.
Porque é que estou a falar disto? Porque é importante para perceber a minha história.
Eu cheguei quase aos 40 anos e perdi a vontade. Perdi, pronto, não sei… já não queria nada. Fazia a minha vida, ia trabalhar, tinha os fins-de-semana, às vezes ia ver amigos, mas, não sei, parecia que tinha ficado vazio.
Alguns amigos perguntaram-me se estava tudo bem, mas outros disseram-me que andavam a gostar mais da minha companhia. Isso fez-me confusão. Porque é que haviam de gostar mais de mim se eu me sentia vazio e sem vontade de nada?
Se tivesse sido só uns dias assim ou mesmo um mês ou dois se calhar não tinha feito nada, mas andei assim um ano e meio. Não me sentia desesperado, era só como se visse tudo do outro lado de um ecrã.
Uma vez, a falar com uma prima minha, que me falava da psicóloga dela, pensei que se calhar devia ir falar com alguém, mal não havia de fazer. A minha prima falou com a psicóloga dela e fui encaminhado para um colega dela.
Eu pensava que não tinha nada para dizer, mas acho que só parei de falar lá para a quarta ou quinta consulta. Eu não estava com pressa, sabia-me bem falar.
Depois comecei a querer ouvir… acho que aí foi que comecei a querer melhorar.
Por isso, sim, como eu tava a dizer: sempre tive uma namorada por perto. Ou estava a começar uma relação ou estava a sair de outra, às vezes uma nova começava antes de acabar com a anterior. Às vezes ficava sozinho durante um curto tempo e desesperava, como se nunca mais encontrasse ninguém, depois encontrava.
Invariavelmente corria da mesma forma: uma bruta paixão no início, um deslumbramento, sentia-me compreendido e valorizado como nunca antes. Depois passava algum tempo e elas começavam a ter comportamentos parvos, começavam a implicar com montes de coisas, começava a ser um stress. Quando íamos sair com amigos acabávamos por ser uns chatos porque era sempre preciso resolver um assunto qualquer naquele momento, tínhamos que nos afastar dos amigos para ir discutir qualquer coisa, parecia sempre tão importante.
Até num funeral isto aconteceu. Tive que me afastar com a minha namorada da altura para resolver um stress com ciúmes (já nem me lembro quem é que tinha ciúmes, eu ou ela).
Depois começava a fartar-me, enchia os ouvidos dos meus amigos a falar mal delas, de como me estavam a faltar ao respeito, faziam a minha vida um inferno. Atenção: eu sentia mesmo isto, não era invenção. Os meus amigos lá reviravam os olhos e já não diziam nada.
Depois houve uma que me deixou, já nem sei porquê, não devia ser nada demais. Mas aí perdi a vontade de estar em relações. Passei a estar sozinho. Os tais amigos que passaram a gostar mais da minha companhia era porque eu já não estava com dramas de namoradas, era só eu.
Mais tarde percebi que a diferença nesta última relação é que ela nunca se zangou comigo, nunca me deu hipótese de dizer que a culpa era dela, fiquei só comigo mesmo, percebendo que era eu. Era eu que tornava as situações insuportáveis. Era eu que as enlouquecia e depois agia como se não fosse nada comigo, pior, fazia-me de vítima.
Porque é que eu fazia isto?
Até chegar aí tive que fazer muuuita terapia.
Ora eu cresci com o meu pai. Ele e a minha mãe separaram-se quando eu era muito novo, ela teve um caso e preferiu ficar com a outra família. Não é comum, oiço dizer, mas foi assim.
O meu pai conseguiu passar-me a sua amargura. Ele raramente teve qualquer tipo de relação amorosa depois disso.
Eu queria ter uma relação que preenchesse a falta que senti a crescer, mas não conseguia impedir-me de tentar recriar situações em que por um lado me vingava do que passei e ao mesmo tempo tornava as relações impossíveis para provar que as mulheres são impossíveis de manter felizes, para desculpar o meu pai por ter desistido.
Percebi que estava a fazer o mesmo que ele quando perdi a vontade de tudo, estava a desistir.
Enquanto estava envolto nos dramas “delas” eu não olhava para mim, projectava nelas os meus conflitos internos, não sentia a minha tristeza, em vez disso via a tristeza delas e achava que eram “fracas”, quando acabava com elas não sentia a rejeição que marcou a minha infância, em vez disso era eu que rejeitava. Eu estava viciado em relações para tentar corrigir algo que não tinha correcção possível.
Fora das relações eu não tinha interesses, não fazia nada com o meu tempo. Parecia que estava a marcar um compasso de espera até ao próximo drama. Nem sei como é que mantive os meus amigos, sinceramente devia ser um chato de primeira.
Quando consegui perceber estas coisas foi como se me tivessem tirado uma mochila cheia de pedras das costas…
Voltei a viver, já sabia o que não queria fazer com a minha vida, passei a conseguir pensar mais claramente sobre o que queria mesmo.
Tenho ido viajar com amigos (e amigas), tenho feito desporto, tenho lido imenso e visto imensas séries. Cada vez recebo mais convites para ir fazer coisas. Não fazia ideia que havia tanta coisa para fazer com a vida agora que não ando a obcecar com namoradas.
Se quero voltar a ter uma relação? Claro que sim, mas já não tenho pressa, não preciso de alguém para estar bem.
Tenho uma amiga em particular, que talvez seja essa pessoa. Neste momento estou a gostar de ter uma amizade. Nunca estive numa relação que começasse com amizade. Quero continuar a ser apenas eu, sem dramas.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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