Ecos no vazio
Uma história sobre o momento de viragem
Isto da pandemia está a ser um massacre. No final do ano passado eu achava que estava tudo bem na minha vida, estava casada com o meu marido há 4 anos, já nos conhecemos há 7. Vivíamos tranquilos, achava eu, sem stresses. Cada um trabalhava, tínhamos horários um bocado desencontrados, ao fim-de-semana fazíamos umas coisas engraçadas e quando íamos de férias corria bem. Que mais é que se quer na vida?
Depois começou o Covid. Passámos a trabalhar em casa, as compras vinham por encomenda, saíamos o mínimo possível e… demos em loucos.
Ao final de 3 semanas já não nos conseguíamos aturar um ao outro, saturámos completamente, já não havia conversa, não queríamos nem ver uma série juntos, nada. Mas vivemos num T2, não há muito por onde fugir.
O pior é que nem sequer havia assim uma grande preocupação nas nossas vidas, as empresas onde trabalhamos cresceram bastante com a pandemia, ninguém perto de nós ficou doente. Aparentemente a única coisa insuportável foi estarmos juntos, não conseguia entender.
Assim que acabou o confinamento, ele saiu de casa e não voltou, separámo-nos. Eu pensava que ia ficar aliviada, mas final de 3 dias sozinha comecei a ter ataques de pânico. Fui duas vezes às urgências, fui medicada e levei receita para mais medicação. Acabava por não tomar a medicação nos dias seguintes porque não conseguia trabalhar sob o efeito delas e tinha medo que se não trabalhasse podia ficar pior outra vez.
Falei com amigos e família, sentia-me um pouco melhor, mas depois à noite sentia-me impossivelmente mal. Não sabia o que se estava a passar. Nem queria estar com ele, não tinha saudades, mas não aguentava estar sozinha à noite. Liguei-lhe algumas vezes, mas ele disse-me que só não tinha saído mais cedo para isto não acontecer, agora que já estava a acontecer o mal já estava feito e ele não ia voltar. Senti-me mil vezes pior. Não fiquei chateada com ele, nada disso, fiquei só desesperada por estar sozinha.
Procurei ajuda, foi muito mais difícil do que eu pensava, dar esse primeiro passo, mas não tinha alternativa. Comecei a ter consultas de psicologia.
No início consegui ter 3 consultas por semanas. O psicólogo aceitou negociarmos um preço para eu poder ir tantas vezes, ele percebeu que eu estava mesmo a precisar.
No primeiro mês acho que não falei de mais nada, falava só como me sentia mal, como estava desesperada por estar sozinha, como não queria o meu ex-marido de volta a casa, mas queria alguém, qualquer pessoa servia.
O psicólogo conseguiu ajudar-me muito aí. Ajudou-me a começar a medicação, ajudou-me a ter coragem para procurar um psiquiatra com quem me sentisse à vontade, que me passasse uma medicação que não me deixasse “a babar-me”. Ajudou-me a não ligar a toda a gente que conhecia quando me sentia mal à noite. Ajudou-me a não ir atrás da ideia de meter qualquer pessoa em casa só para não estar sozinha. Enfim, ajudou-me a aguentar a pior pancada.
Depois comecei a acalmar e conseguimos começar a falar sobre mais coisas. Consegui começar a falar sobre a minha história, sobre a minha infância, sobre os sonhos que eu tinha para a vida, sobre todos os meus porquês. Acho que há tanto tempo que não pensava nestas coisas que quase me tinha esquecido quem é que eu era.
Sabem como quando eram crianças e gostavam de fazer desenhos, mas depois nunca mais desenharam nada? Depois um dia pegam num lápis e num papel e lembram-se dos desenhos que faziam na primária? Foi tipo isso que eu senti.
Redescobri uma coisa: em criança eu nunca sabia se estava segura. O meu pai era segurança, trabalhava de noite e a minha mãe era muito imprevisível. Eu nunca sabia se ela ia estar em casa quando eu saía da escola, não sabia se ela depois do jantar se ia lembrar de ficar 2 horas ao telefone com a minha tia, ou se ia sair para beber café com a amiga dela que morava dois prédios ao lado, não sabia se ela ia estar cansada do trabalho e de mau humor ou se ia brincar comigo. Ela nunca me maltratou, mas eu sentia-me muito nervosa sempre que o sol se punha porque não sabia com o que é que contava. Eu sabia orientar-me sozinha e ela nunca estava longe, mas não sabia se podia contar com ela.
Depois fiz o que as crianças fazem: aprendi a tratar as minhas preocupações da mesma forma que ela, passei a fingir que não estavam lá. Empurrei para baixo e aprendi a ir empurrando tudo para baixo. Passei a concentrar-me nas coisas do dia-a-dia. Já na vida adulta foi fácil continuar a fazer isso: trabalhei sempre muito, às vezes 2 empregos, ia ao ginásio e juntava dinheiro para ir viajar sempre que possível. Quando conheci o meu ex-marido ele também era assim.
Demo-nos bem na companhia um do outro e na cama as coisas corriam bem, parecia-me que era o suficiente. Nunca me passou pela cabeça que isso não fosse paixão, nem sei o que é a tal paixão de que as pessoas falam.
Na quarentena esgotámos em 3 tempos todos os assuntos superficiais, todas as rotinas da treta e ficámos só com tudo aquilo que empurrámos para baixo. Afinal não somos compatíveis um com o outro. Eu nem sei se sou compatível comigo mesma, nem me conheço.
Mas foi quando ele saiu de casa que algum gatilho em mim disparou, voltei inconscientemente àquele momento da minha vida em que era uma criança assutada à espera da sua mãe. Parece que depois disso já não consegui empurrar mais nada para baixo.
E agora? Pois, não sei. Acho que só agora é que estou a começar a terapia, já não vou tantas vezes por semana, não estou em desespero, ando mais calma. Agora preciso de tempo para pensar em tudo o que estou a descobrir. Sinto-me 100 anos mais jovem porque estou constantemente a descobrir mais sobre mim mesma. Estou muito longe de ter tudo percebido, ainda tenho que lidar com muita coisa, mas consigo respirar quando estou sozinha e isso vale tudo!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.