Um Conto sobre a Depressão aos olhos do Deprimido
Contar a minha história? Epá… ya, pode ser, vou tentar. Eu era daqueles miúdos bem-dispostos, só queria jogar à bola, falar dos jogos da PS, Xbox, qual é que era melhor consola. Gostava dos meus amigos na escola. Em casa não havia assim nada para me queixar, os meus pais tinham horários de trabalho diferentes, às vezes tava mais com o meu pai, às vezes com a minha mãe, era assim normal, não sei.
A cena que estragou foi quando eles se divorciaram. Eu tinha 10 anos. Aquilo apanhou-me do nada, pensava que tava tudo bem, mas afinal não. Tudo o que era normal para mim deixou de ser. Eles conseguiram proteger-me do que se estava a passar até já não conseguirem.
O meu pai e a minha mãe não conseguiram entender-se depois do divórcio, tavam sempre zangados, berravam sempre que falavam um com o outro. Não conseguiram concordar sobre o que fazer comigo. Fui passar uns tempos com os meus avós. Era para ser só aquele verão… foram 3 anos.
Eu gosto muito dos meus avós, mas não sei… não era a mesma coisa. Quando falava com eles das coisas de que gostava eles sorriam, mas não sabiam do que é que estava a falar, tentei ensinar o meu avô a jogar Playstation comigo, mas não dava, né?
Deitavam-se antes de mim, tinha que me orientar sozinho com as cenas da escola. Eles eram fixes, mas fiquei um bocado perdido.
Mudei de escola, mas nunca me dei muito com o pessoal de lá porque tava sempre à espera de voltar pra casa…
Pronto, foi assim. 3 anos depois fui viver com a minha mãe, já não tava tão zangada com o meu pai, mas não me parecia feliz. Via o meu pai de 15 em 15 dias, ele também não parecia muito feliz.
Voltei pra minha escola, mas já não era a mesma coisa. Os meus amigos ainda tavam lá, mas diferentes. Tinham todos seguido em frente com o tempo, eu tinha ficado parado, senti-me estúpido, deixado para trás. Já não tinha força nem vontade para apanhar o ritmo deles.
Mudei de amigos, andei assim perdido outra vez, sentia-me sem lugar. Sentia que ninguém queria saber. Fui ficando com menos vontade de fazer coisas, dormia mal. Andei assim uns tempos, à espera de perceber o que fazer, o que tava a acontecer, não melhorou muito.
Aí aos 14 anos mais ou menos acho que fui percebendo que tava deprimido, tinha os sintomas todos, sentia-me mal, desligado, achava que se a vida não mudasse então podia morrer que era melhor.
Nas noites sem dormir comecei a procurar coisas online sobre depressão, o que era, quais os sintomas, o que fazer. Percebi que há imensas pessoas que sofrem do mesmo, muita malta da minha idade também. Senti algum alívio, afinal eu não era assim tão estranho. Afinal havia pessoas com quem podia falar sobre o que estava a sentir. Ajudou-me no início.
Depois comecei a perceber que havia qualquer coisa que não batia certo naqueles fóruns, nas conversas que eu tinha com as pessoas, nas imagens que partilhavam, nas coisas que diziam…
Sempre que falava com alguém, a outra pessoa só queria falar dela própria o tempo todo, do quanto tinha sofrido, do que estava a sofrer, de como estava mal. Eu tentava dizer alguma coisa e parecia que nem queriam saber, tavam só à espera de voltar a falar delas próprias. Fiquei triste, chateado, zangado. Não só porque não queriam saber, mas porque percebi que eu queria fazer a mesma coisa: falar de mim, não queria saber da história dos outros.
Comecei a sentir-me de parte ali também, achava aquilo parvo. Parecia um concurso para ver quem é que estava pior, quem é que sofria mais, quem dormia menos, quem se cortava mais. Vídeos de gente a chorar. Se calhar tive azar, se calhar há sítios melhores para procurar respostas.
Procurei noutros sítios online, sítios que prometiam ajuda. Dicas para fazer mais desporto como cura da depressão, não sei a quem é que isso faz sentido, mas a mim não fez. Os 12 passos para a felicidade, hábitos diários para controlar a depressão, frases feitas que pareciam dizer alguma coisa, mas que eram só parvos, nada ajudava mesmo.
Andei assim mais uns anos, cada vez mais chateado com a vida, cada vez mais deprimido e zangado, desligado, não queria saber. Aos 17, já não sei se fui eu que pedi, se foi a minha mãe que decidiu, mas fui ao Psicólogo.
Das primeiras vezes que lá fui fiquei a olhar para os pés, não sabia o que dizer, não queria falar, aquilo tudo parecia parvo. Já tava à espera de começar a ouvi-lo a dizer que eu tinha de ficar melhor, que tinha de fazer um esforço…, mas ele nunca disse isso. Quando percebi que ele não ia puxar por mim, não ia pregar-me outro sermão, comecei a sentir-me mais à vontade. Um dia comecei a falar, não sabia como fazê-lo, mas com a prática lá fui percebendo.
O Psicólogo nunca me deu os 12 passos para ser um idiota feliz, nunca me disse que tinha de acordar mais cedo e fazer a cama, nunca me disse o que devia fazer. Isso para mim mudou tudo. Eu podia falar de tudo, sem medo, sem pensar que aquilo ia-me ser atirado à cara. Podia-lhe dizer que ia tatuar a cara e ele só me perguntava porquê, qual o desenho, etc.
A pouco e pouco, comecei a perceber-me melhor, deixei de estar tão virado para dentro, para a minha dor. Comecei a sair das consultas a saber o que queria fazer a seguir.
Comecei a sorrir.
Demorou muito tempo, mas era o meu tempo, era aquilo que eu conseguia, até que um dia já me sentia suficientemente bem sozinho, sem ajuda, para voltar a viver. Voltar a gostar da vida, sem aquele peso, aquela apatia. Os meus dias não são todos uma alegria, ninguém vive sempre feliz e alegre, mas posso e consigo estar feliz, posso e consigo não estar deprimido!!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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