Uma história sobre a falta de pertença

 

Eu sempre achei essa treta de ir ao psicólogo uma coisa de gente fraca, mulheres sem nada para fazer e “Drama Queens”. Custou-me imenso ir as primeiras vezes, pensava que me fazia um fracassado. Há com cada ideia mais parva que um gajo tem…

Porque que é que fui se estava tão contra?

Aos 24 anos terminei a faculdade e fui logo trabalhar, felizmente na minha área nunca falta trabalho. Ao fim de 1 ano demiti-me, não me encaixava naquela empresa, naquela maneira de pensar. Fui para uma empresa muito melhor, mas ao fim de 3 meses comecei a perceber que não tinha nada a ver com o que me tinham apresentado no início, na primeira entrevista, ao fim de 6 meses mudei para outro. Esse outro correu um pouco melhor, mas ao fim de 2 anos saí, pelos mesmos motivos: não me encaixava, não tinha a ver comigo, a minha maneira de estar, tentaram lixar-me umas poucas vezes nas reuniões… enfim.

Eu estava longe de achar que o problema era meu até que, quando estava perto de me demitir do meu sexto emprego, o meu chefe me chamou para conversarmos. Disse-me que sabia que eu tava quase a ir-me embora. Disse que não via motivos para eu sair, que fazia um bom trabalho, que as pessoas gostavam de mim, que sabia que eu andava revoltado com algumas coisas, mas que isso eram coisas minhas, ninguém me tinha feito mal naquela empresa. Por fim disse-me que se eu continuasse a acrescentar empregos de 6 meses a 1,5 anos no meu CV, qualquer não trabalhava era em lado nenhum. Essa bateu-me.

Até ali eu não tinha parado para olhar para o que estava a fazer. Eu não me via no mundo, só via o que o mundo me poderia deixar fazer, não que os outros pudessem ter uma opinião sobre as minhas acções, aliás que as minhas acções pudessem ter efeitos no meu futuro. Não sei se tava com a cabeça noutro lugar, se ainda era muito puto para pensar nisso, mas aquela conversa deixou-me a pensar no assunto.

Voltámos a falar mais uma ou duas vezes, não me demiti. Ele disse-me que tinha todo o gosto em conversar comigo aqui e ali, mas que não podia estar sempre naquilo e que era meu patrão em primeiro lugar. Recomendou-me um psicólogo. Eu aceitei, não disse nada, mas fiquei chateado. Hoje sei que isso também era sinal de alguma coisa.

A minha namorada também me disse para ir ao psicólogo, ficou super feliz de saber que outra pessoa me tinha dito para ir… fiquei a remoer naquilo. Numa discussão que tivemos, ela disse-me que eu tinha todo o direito de não procurar ajuda, mas que ela também tinha direito de ir procurar alguém que tivesse mais vontade de ser feliz. Fiquei entalado, não queria perdê-la, não queria mesmo nada perdê-la. Fui.

Logo nas primeiras sessões comecei a implicar com o psicólogo, a tentar discutir com ele, nem sei porquê. Ele ouvia, quando eu lhe dizia alguma coisa provocatória, ele só me fazia perguntas, nunca se chateava. Ao fim de algumas semanas nisto, não sei, fui acalmando, não sabia porque é que queria tanto discutir com ele, comecei a conseguir pensar.

Hoje sei dizer que o que estava a fazer era levar para ali uma raiva gigante que eu tinha dentro de mim desde sempre. Só sabia estar assim. Queria gritar com o meu pai, com a minha mãe, por terem sido como foram comigo.

Foram maus? Epá sei lá, acho que não. Mas não conseguia falar com eles sem me ferver o sangue.

Aos 15 anos eu soube que fui adoptado. O meu irmão mais novo é que era mesmo filho deles. Eles adoptaram-me porque pensavam que não podiam ter filhos. Afinal podiam. Ele veio quando eu tinha 3 anos. Não sei como é que eram as coisas antes, mas sei que desde sempre tive a sensação de estar a mais.

Nunca me faltou nada, nunca fui posto de lado, mas sei que a minha avó queria sempre abraçar primeiro o meu irmão. Ambos recebíamos prendas dela, sempre igual, mas com ele havia sempre uma palavra extra, um carinho extra, qualquer coisa. Os meus pais não faziam isso, mas pareciam que não notavam quando ela fazia.

Em casa, éramos tratados de igual, mas, não sei… parecia que levavam sempre mais a sério as coisas dele. Parecia que eu só tinha atenção quando fazia asneira. Por isso, mesmo sem querer, passei a fazer asneira mais vezes… zangavam-se comigo, eu ficava ainda mais chateado com ele… por aí. Parecia que não sabiam o que fazer comigo. Quando me disseram que eu era adoptado, tudo passou a fazer mais sentido, eu tinha razão!! Afinal era diferente dele! Ele era o favorito!!

Nem consigo dizer como fiquei, de tão furioso que tava. Parece que essa fúria ficou comigo para sempre, só queria afastar-me deles, mas quando conseguia sentia-me sozinho, zangado e rejeitado, por isso aproximava-me. Eles nem sempre me recebiam bem porque eu já tinha feito tantas asneiras, entretanto… e assim recomeçava…

Quando saí de casa tinha a certeza que tinha deixado isso tudo para trás, mas não, passei a fazer isso com as pessoas, os empregos, namoradas. Mas se alguém me rejeitasse a mim eu passava-me! Ficava furioso, revoltado. Cheguei a reatar com namoradas antigas só para ser eu a acabar, sim eu sei, não foi a melhor das coisas a fazer.

Acho que foi por isso que quando o meu patrão veio falar comigo fiquei tão afectado. Era alguém que podia ser um pai, a dizer-me que gostavam de mim mas que eu ia arranjar forma de ficar sozinho (sem emprego).

E na terapia o que é que fui fazer? Fui tentar despejar isto em cima de outra pessoa, ficar sem esta zanga. Não foi suficiente. Depois de despejar tive que voltar a engolir, mas desta vez pus-me a pensar com calma em tudo. A perceber que sim, poderão ter havido momentos na minha vida que foram assim, em que não fui o favorito, mas foi a minha reacção que fez com que tudo ficasse pior. Se os meus pais fizeram algumas coisas mal? sim, de certeza que sim, mas não podem ser responsáveis por tudo o que me correu mal e serem invisíveis quando a vida corre bem… Tive que aceitar os meus defeitos, ver tudo aquilo a que peguei fogo e começar a reconstruir, a ser humilde. É uma coisa curiosa, nunca me tinha apercebido, mas a zanga, a raiva torna-nos tão arrogantes. Tudo é justificado pela zanga, tem-se sempre razão!

Mas não pode ser assim, porque senão só sobram cinzas.

Ainda estou longe de estar onde quero estar, vou continuar a fazer terapia muito tempo, mas tenho a certeza que prefiro ser quem sou hoje do que ser quem era há uns anos. Quero construir e plantar, já não quero ver tudo a arder.

 

 

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

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