Uma história sobre viver na sombra da loucura
Eu nunca fui o louco, o perturbado. Nunca fui o motivo das insónias e preocupações dos meus pais, eu nunca fui…eu fui passando.
Estou com 27 anos, pensava que não passaria pelo gabinete de um psicólogo, pensava que para isso era preciso haver muitas crises de choro, de gritos, de violência, insónias e cabelos arrancados. Pensava só havia ajuda para o desespero.
Para contar a história da minha saúde mental ainda tenho que contar a história da minha irmã.
Quando eu era mais pequeno os meus pais tinham mais tempo, acho que trabalhavam menos. Quando a minha irmã estava para nascer lembro-me de ouvir os meus pais a falarem muito sobre o trabalho, as preocupações com o dinheiro. Deve ter sido muito stressante quando ela nasceu prematura. Eu tinha 7 anos. Ela ficou 1 mês no hospital, não pôde vir logo para casa. Lembro-me que queria muito conhecê-la, mas em vez disso era o meu pai em casa sozinho, muito preocupado, poucos sorrisos. Passei muitas noites com os meus avós. Eu gostava deles, mas não estava à espera.
Mais tarde, da creche, as educadoras disseram que ela estava com dificuldades, que não devia entrar logo para a primária. A minha mãe ficou zangada, insistiu. Conseguiu que fosse para a primária. A minha irmã foi vista na pedopsiquiatria por recomendação do pediatra. Foi medicada com ritalina. Ajudou imenso, andava mais tranquila em casa, na escola falavam bem dela. Mas passados uns tempos a minha mãe começou a falar mal da ritalina, uma amiga tinha-lhe explicado que aquilo era muito mau e não sei quê, tirou a medicação. Voltei a ouvir gritos em casa, voltei a dormir mal com o ambiente em casa, voltei a ouvir falar do comportamento dela na escola.
Isto foi o início, passou a ser sempre assim, a minha irmã andava pior, era tratada, melhorava, a minha mãe fartava-se do tratamento e parava, a minha irmã piorava. Porquê? Sei lá, pensei tantas coisas sobre isso, acreditei que era melhor assim, achei que a minha mãe tava doida…sei lá, sei que era assim. Lembro-me que quando a minha irmã estava melhor um tempo, lá ouvia a minha mãe a dizer: “Ai se ela fica pior outra vez… ai espero que ela não piore… ai espero que ela se aguente.” Depois arranjava forma de interromper o tratamento que ela estava a fazer nessa altura.
O meu pai acabava por concordar com a minha mãe, ia atrás desta forma de estar.
Onde é que eu entro?
O problema é esse. Não sei. Não sei onde entro na minha história. Dizia a brincar, na adolescência, que a família é só um conjunto de pessoas que divide o mesmo tecto. Era a brincar, mas era verdade para mim, eu vivia lá, mas como não andava a dar problemas a torto e a direito, pronto não era preciso preocuparem-se comigo. Se calhar devia-me ter passado mais, tinha sido mais saudável. Lembro-me perfeitamente de uma vez que eu estava a sentir que devia ter mais espaço em casa, que deviam dar-me atenção e logo depois a minha irmã foi internada na psiquiatria. Lembro-me de estar sentado ao lado da cama dela, ela estava a dormir, e de me sentir culpado, sentir que era castigo, o meu egoísmo em querer atenção resultou nela ficar pior. Não faz muito sentido, mas a culpa não precisa de fazer sentido.
Acabei por crescer com um lado frio, prático, de aceitar que as coisas são como são, não vale a pena insistir na mudança. Com essa frieza veio também uma tristeza, acho que não é depressão, é apenas uma parte de mim, um lado triste pelo que não foi, mas que aceita.
Pensava que nada disto seria muito importante no futuro, até que foi.
Aos 26 anos a minha namorada pediu-me em casamento e eu desabei. Fiquei feliz no início, mas depois comecei a ficar com muito medo, acordava encharcado em suor a meio da noite, aterrorizado. Não conseguia pensar direito durante o dia. Andava ansioso e stressado.
Isto andou assim uns meses até que pedi ajuda, fui ao psicólogo. Com essa ajuda desmontei a minha história, preenchi as lacunas de todos aqueles momentos solitários a ver a minha família a correr atrás da história dramática da minha irmã.
Tinha a certeza que tinha conseguido ultrapassar tudo isso. Afinal não.
Visto agora acho que é óbvio: eu tinha um medo profundo de avançar na vida, de dar os passos seguintes, porque a cada novo passo ficava mais perto de construir uma família. Assim que tivesse uma família ia desaparecer novamente. Sim, dito assim é parvo, mas os medos que eu escondia sem saber que os tinha eram estes, e eram gigantes.
Precisava de me ouvir a falar em voz alta sobre tudo isto para poder perceber do que é que tinha medo, precisava de conhecer o medo para poder dar a volta.
Consegui, pouco a pouco, perceber que não estou destinado a seguir o mesmo caminho da minha família, que posso fazer diferente. Percebi que por mais que eu goste da minha irmã, ela não é o meu fardo, não sou responsável por decidir o percurso dela. Farei parte da sua vida, ajudarei, mas não serei responsável por ela, pelas suas escolhas e angústias, não vou esperar que ela esteja bem antes de seguir o meu caminho. Até porque isso seria um peso para ela.
Percebi que posso ter um lugar na minha vida, que não preciso de estar nas sombras, não preciso de esperar a minha vez. O alívio com que vivo neste momento é algo que não consigo explicar. Vivo livre e sei que sou livre!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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Michael Dickinson