Uma história sobre o que não fui.
É uma forma estranha de uma pessoa se apresentar, não o faço socialmente, mas muitas vezes penso desta forma: sou um ex-assassino.
De tudo o que estudei sobre assassinos em série, o planeamento, a obsessão, os detalhes e, acima de tudo, o desejo, aquele desejo que assombra, sei que era um assassino. Nunca matei ninguém, aliás, nunca fiz mal a ninguém, mas sentia-me de tal forma assim que sabia que o era.
O que é que me “salvou”? O que é que me impediu de sair da fantasia? Uma namorada.
Ah que bonito, foi o amor e tal! Nada disso, foi horrível. Quando terminámos já só havia ódio, juntámo-nos na doença mental, o meu pior foi atraído pelo pior dela e, com o tempo, a relação degradou até ser uma partilha de ódio, pelos outros, pelo mundo e por fim um pelo outro.
Quando terminou, eu estava de tal forma esgotado de tudo, de mim, de odiar, de querer destruir, que só quis isolar-me, ficar sozinho, não ter que interagir.
Ser o foco de tanta zanga, tanto desprezo, tanto ódio, ajudou-me a ver-me ao espelho, a perceber o caminho que eu pensava que queria seguir. Não sobra nada de quem vai por esse caminho. Deve ser isso que aqueles miúdos nos EUA sentem depois de invadirem as escolas com armas na mão. Deve ser por isso que acabam quase sempre da mesma forma.
Quando alguém está louco de desejo por alguma outra pessoa e fantasia com essa pessoa, não costuma estar focada no “depois”. Depois do primeiro encontro, depois do primeiro momento a sós. O foco costuma ser o momento em si.
Nas minhas fantasias doentes não havia um depois, para além de uma vaga consideração sobre as consequências. Não imaginava o vazio, a falta de propósito. Imaginava sim, o momento libertador, o preenchimento da fantasia.
Ter sido odiado como fui ajudou-me a encontrar esse “depois”. Essa exaustão, esse nada que sobra depois de tanta destruição… não valeu a pena.
Nesse tempo, nesse nada que eu encontrei, senti o mundo a ruir, a cair-me aos pés. Eu já não queria fazer mal a ninguém, mas então o que é que eu queria…? Nada, não queria nada. E assim fiquei, fui piorando, fui caindo nas minhas próprias trevas porque agora não havia vontade para me impedir. Mais tarde descobri que chamam a isso depressão.
Não vou perder tempo a explicar quanto tempo demorou e quantas voltas tive que dar na cabeça até pedir ajuda, a única coisa que interessa é que pedi ajuda. Comecei a frequentar consultas de Psicologia. Foi a primeira vez na vida em que senti que existia apenas por mim, sem expectativas, sem exigências.
Uma das coisas que percebi cedo era que eu não era um assassino. Aliás, se calhar não precisei de ajuda para perceber isso, se calhar precisei só de saber que podia deixar de ter uma “persona” interior a que me agarrar para me fechar do mundo.
O que é que a minha história de vida tem assim de tão mau para me ter tornado nesta pessoa magoada pela vida?
À primeira vista nada. Os meus pais são casados ainda, sempre houve dinheiro suficiente para eu ter uma “vida boa”. Nunca me escassearam oportunidades.
A primeira pista que surgiu em terapia foi a minha memória, ali nos 9 anos, de ter inveja das crianças de países de terceiro mundo que eu via na TV. Eu invejava aquela liberdade que eles tinham, a correrem descalços, sozinhos ou em grupos, por onde quisessem. Ignorava a pobreza, a saúde, só via a liberdade deles. Porquê? Não seria eu livre? Aparentemente era.
Sempre cresci a ouvir dizer que podia fazer tudo o que quisesse. Eu acreditei. Até começar a terapia nunca tinha questionado essa liberdade.
Comecei a questionar, comecei a procurar indícios. Experimentei ter opiniões diferentes dos meus pais. Fui recebido com sermões sobre a forma “certa” de ver as coisas, fosse política, artes ou desporto. Fiquei chocado, nunca tinha percebido que era assim. Tentei muitos temas, assuntos, ideias, comportamentos, sempre o mesmo resultado. Não era directo, não era fácil de perceber à primeira. Eles davam-me sempre a volta até que eu pensava que a ideia era minha!
Fui ver fotos e vídeos de quando era miúdo, fui à procura de indícios. Encontrei, em criança tinha sempre alguém, ou mãe, ou pai, ou avó, fosse quem fosse, a pairar atrás de mim. Não encontrei uma foto, um vídeo, em que não estivesse um par de mãos quase a tocar-me nas costas. Fiquei com suores de claustrofobia só de ver as fotos.
Comecei a ver outras coisas: nunca participei na minha matrícula na escola, nem em qualquer actividade. As coisas apareciam feitas. Na altura de comprar material para o desporto ou para a escola eu nem tinha de pensar, ora aparecia já em casa ou então eu ia com o meu pai preencher a lista que ele tinha.
Nunca fui dono de nada do que eu fizesse. Cumpria a minha parte. É algum crime, os pais tratarem das necessidades todas de um filho? Acho que não. Mas nunca pude ser responsável por nada. Nunca tive que lidar com nada para além dos estudos e fazer o meu papel. Nunca consegui sequer pensar sobre isso porque os meus pais passavam a vida a explicar-me a sorte que eu tinha.
Vivia preso sem ver as grades. A minha zanga, a minha agressividade não tinha foco, não tinha escape. Criei estas fantasias parvas sobre ser assassino como forma de canalizar toda essa zanga recalcada. Ainda bem que tive aquela namorada. Ambos tivemos um papel de me*da na vida um do outro, mas eu precisei disso para conseguir ver-me ao espelho. Para ver quem é que eu podia ser sem a zanga.
Saí de casa, fui viver para outro país um tempo, longe de casa, dos meus pais. Compreendi os motivos deles, mas estava longe de os perdoar.
Explicaram-me que eu estava a fazer mal, que tinha um curso para terminar, que não era assim que se faz, etc., não liguei. Fui.
4 anos mais tarde voltei, finalmente eu, finalmente adulto (ou perto), fiz escolhas novas, tenho ideias diferentes. Aos poucos estou a aprender e a ensinar aos meus pais como nos podemos dar melhor. Já saí da minha zanga. Agora já posso ser mais que isso.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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Michael Dickinson