Uma história sobre viver na sombra da memória alheia
Nunca soube que havia alguma coisa de mal comigo. Sempre pensei que as perturbações emocionais fossem uma coisa assim mais fácil de ver, de perceber que alguma coisa não batia certo. Eu não sabia, mas descobri, mas primeiro vi a minha vida a desmoronar-se à minha frente sem perceber como ou porquê…
Eu tinha uma coisa, uma impressão vá, como se fosse uma comichão no pensamento que eu não conseguia coçar. Tentava e tentava, mas não chegava lá. Nunca me apercebi dessa comichão, mas tava lá, debaixo de tudo o resto e eu tentava chegar lá.
Quando era miúda não fazia mal, eu tinha esta ânsia de chegar a algum lado, era acabar a escola, era tirar um curso, era tirar a carta, era arranjar emprego, era… dá para perceber. Eu tinha motivação para fazer as coisas e esta impressão escondia-se debaixo disso.
Com o passar dos anos fui abrandando, fui ficando sem as coisas que precisavam de ser feitas. Casei-me, tivemos um filho, 2 gatos. Tava tudo bem. Mas depois já não estava.
Antes do divórcio o meu marido, ex aliás, queixava-se que eu não estava lá, eu não percebia e ele não conseguia explicar muito melhor. Ele queixava-se da falta de intimidade na relação, eu achava que estávamos bem, que pronto a vida de adulto com família não dá para estar sempre em festa, né? Mas ele dizia que não era só isso, dizia que mesmo quando estávamos juntos eu não estava bem lá. Queixava-se que eu dava mais importância às lidas da casa do que a nós, que eu só queria saber de listas, roupa para o miúdo, decoração da casa, por aí adiante. Eu achava que ele estava a exagerar, as coisas precisam de estar organizadas, ou não? Eu fazia a maior parte das coisas. Ele respondia a dizer que eu fazia a maior parte das coisas porque queria, porque estava obcecada. Eu respondia-lhe torto. Hoje vejo que ele tinha razão. Montes de vezes ele tratava de tudo em casa e mesmo assim eu ia lá fazer outra vez sem necessidade. Ele arranjou uma empregada para a nossa casa, estava sempre tudo impecável, eu ia lá e fazia por cima. O pior é que na altura eu nem me apercebia, deixava-me levar por esta certeza que havia coisas por fazer.
Não me apercebi quando ele começou a estar mais ausente, não me apercebi quando ele deixou de me dizer olá e adeus, mais tarde ele disse-me que tomou nota da minha indiferença, que foi isso que o convenceu a procurar uma nova companhia. Disse que preferia educar o nosso filho estando divorciado, mas feliz, do que casado, infeliz e zangado.
O divórcio também me deixou muito ocupada, tanta coisa para tratar, ajudar o meu filho a lidar com tudo, não deve haver uma idade boa para isto, sei que aos 9 não corre bem. Não pensei em muito nessa altura. Lembro-me de sentir um alívio, por pensar que assim se calhar já ia ter tempo de fazer tudo o que tinha para fazer… idiota…
Demorou o tempo que teve de demorar. No primeiro fim-de-semana sozinha em casa, o rapaz estava com o pai, eu estava convencida que ia adiantar montes de coisas, ia fazer os dias render. Comecei a dar a volta à casa, a ver o que tinha para organizar, fui ver as minhas contas no banco online, só que estava tudo em ordem, não havia nada pendente em lado nenhum. Pela primeira vez percebi isso. De repente eu não sabia porque é que estava tão fixada em encontrar coisas para fazer… senti o chão a abrir-se debaixo dos meus pés, sentei-me, vazia, completamente vazia, sem perceber o que é que eu tinha feito à minha vida. Veio a primeira lágrima. Chorei até ser de noite. Bebi água, comi uma bolacha e fui dormir. Acordar foi pior.
Bom, uns meses mais tarde lá me meti em terapia, não era só um mau momento ou um dia mau, havia alguma coisa de errado comigo e eu não percebia. Os comprimidos para dormir do médico de família fizeram apenas isso, puseram-me a dormir.
O que é que eu posso dizer? Posso dizer que foi incrivelmente difícil, demorou muito mais tempo do que eu pensava que ia demorar, mas cheguei lá. Não sabia que era isto que eu ia encontrar.
O que é que estava debaixo de todas as outras camadas?
Os meus pais são retornados. Eu sei que hoje em dia essa palavra já não significa muito, mas já foi uma palavra muito conhecida. Eu cresci, desde que me lembro, a ouvir falar sobre o paraíso encantado que foi a África portuguesa, que em Moçambique é que era, que em Angola se fazia isto e aquilo, mas que depois tiveram que estragar tudo.
Eu nunca pude gostar livremente da minha terra, tinha sempre as vozes dos meus pais na cabeça a dizer que noutro sítio, de outro tempo é que era bom. Lembro-me de sentir sempre alguma culpa de gostar dos nossos passeios em família, ou das viagens que fazíamos ao norte. Nunca conseguia apenas gostar, sentia que estava de algum modo a trair a confiança deles. Mas eu nunca conheci a África deles, eu nunca fui desse tempo. Eu não tenho culpa do que perderam. Eles viviam numa estranha expectativa de alguma coisa acontecer e tudo voltar a ficar bem. Sem perceber herdei isso, mas de forma deturpada, senti que os devia salvar deste destino.
Quando tinha 17 anos uma prima minha, mais velha, foi viver para Moçambique. Eu pensei que seria uma boa ideia fazer o mesmo, mas ouvi logo os meus pais a criticar a minha prima, a dizer que ela não ia encontrar la nada de jeito, que o tempo daquela terra já tinha sido, que era parva por tentar.
Fiquei frustrada, fiquei sem saber bem o que fazer. Acabei por arrumar a ideia, ou assim pensava, de ir salvar o legado africano. A verdade é que fechei a ideia de ir para lá, mas acabou por ser pior, assim fiquei apenas com a expectativa, com este “algo” por fazer. Mas esse “algo” era um vazio, uma tarefa inalcançável, impossível. O inconsciente não lida muito bem com paradoxos, aprendi.
Enquanto eu tinha metas para onde canalizar essa inquietude tudo bem, mas quando deixei de ter, as coisas começaram a correr mal.
Não consigo estar zangada com o meu ex porque concordo com ele. Ele tentou imensas vezes, das formas como sabia, chegar até mim. Mas eu estava perdida nesta procura de coisas por fazer porque se não estivesse a fazer coisas, se estivesse apenas a estar, a sentir, então sentia o vazio a começar a vir ao de cima. Eu na altura não percebia o que era e por isso mascarava, até para mim, esse vazio com tarefas, com coisas para fazer.
Depois de perceber as peças do meu puzzle, da minha história, consegui começar a libertar-me dela. Foi assustador no início, o sentimento de liberdade, o ser capaz de não estar a fazer nada senão aproveitar os momentos. Senti muitos momentos de vertigem, de medo, mas consegui, um passo de cada vez, reconquistar a minha vida, as minhas emoções.
Tenho um amigo novo, é totalmente diferente do meu ex-marido, mas deve ser isso que dizem sempre. Já nos conhecemos há algum tempo, em breve acho que vou convidá-lo a jantar lá em casa e conhecer o meu filho, por mais chato que seja conhecer um miúdo adolescente. Não vou agradecer tudo o que aconteceu porque foi muito mau, mas estou grata por estar onde estou agora.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
Gostou?
Inscreva-se para receber os Contos Clínicos no seu email de cada vez que sair um Conto novo. Receberá também conteúdo exclusivo em cada Conto.
Se quiser falar connosco, se estiver à procura de ajuda para si ou para alguém, entre em contacto.