Uma história sobre o possível e o impossível.
Como é que se conta uma história destas?
Vou começar do ponto onde me faz sentido. É verdade que sempre fui um bocado dada a ficar deprimida, mas foi por volta dos meus 25 anos que a coisa ficou mesmo má.
Saí da casa dos meus pais, fui viver com o meu namorado da altura. Gostávamos muito um do outro, mas ele passou pelo pior da minha depressão. Não sei descrever ao certo tudo o que eu passei e senti, sei que vivia como que debaixo de água, mal conseguia sair da cama, coisas tão banais como ir à rua comprar pão passaram a ser impossíveis. Não sei explicar de outra forma, não conseguia fazer, simplesmente não conseguia. Fechava-me no quarto semanas a fio, não tinha qualquer noção do tempo, se era de dia ou de noite.
Comecei a ser acompanhada por um psiquiatra, sei que há quem fale muito mal dos psiquiatras, mas o que sei é que foi aquela medicação que me permitiu ser funcional, ir trabalhar, pronto, ter uma vida com os mínimos necessários para ser uma pessoa.
Como é que a relação foi ficando…? Quando eu estava muito mal, apoiava-me imenso nele, tinha imenso medo de o perder, sentia que caso ele me deixasse a minha vida ia acabar, que não podia viver sem ele. Depois quando sentia que não o ia perder, eu atacava-o furiosamente, insultava-o, desmasculinizava-o, não cheguei a bater-lhe, mas se calhar não era tão grave como as palavras que lhe dizia. Nesses momentos nem me conhecia. Mais tarde arrependia-me, queria muito pedir desculpa, mas às vezes não conseguia, perdia-me nos meus pensamentos, na minha escuridão.
Andámos nisto uns tempos, ano e meio, acho eu… depois ele deixou-me. Não o censuro.
Depois, sozinha, foquei-me em melhorar, mantive as consultas de psiquiatria. Consegui reorganizar-me, fui-me sentindo melhor.
Depois conheci aquele que viria a ser o meu marido. Encantei-me profundamente, a grande paixão, o casamento foi perfeito.
Fui-me mantendo ok, tivemos um filho quando eu tinha 33 anos. O dia em que ele nasceu ficou-me profundamente marcado na memória pela positiva.
No primeiro ano lidei bem comigo, com ele, connosco. No segundo ano também, os altos e baixos eram os normais da vida. Mas quando o meu filho fez 3 anos senti-me a deslizar, a começar a voltar atrás, àqueles conflitos na relação que pareciam vir do nada, aos humores negros.
Nessa altura procurei a ajuda de um psicólogo. Consegui ir tratando do meu mal-estar nas consultas, consegui não levá-lo para casa comigo.
Ao longo das sessões, dos confrontos comigo mesma, das dúvidas, fui-me libertando, ficando mais leve, mais capaz de sentir livremente sem medo de voltar àquele buraco.
O inconsciente é uma coisa tramada quando o ignoramos, hoje sei disso. O nosso passado marca-nos sempre.
A minha mãe, a bem dizer, foi uma má mãe. Sinto que ela nunca gostou de mim (talvez tenha gostado à sua maneira), nunca se importou o suficiente. Isto reflecte-se em muitas coisas, mas para mim o pior foi crescer com o sentimento de vazio. Lembro-me, mesmo em pequena, de às vezes me chatear com ela, ficar zangada, mas nunca podia fazer nada com essa zanga, porque ela não queria saber. Isto era horrível, não estava lá para o bem, mas também não estava para o mal, nunca consegui levar as minhas emoções até ao fim, ficava sempre na dúvida.
Isto ficou comigo até adulta. Para culminar, aos meus 12 anos ela deixou-nos a mim e ao meu pai.
O meu pai foi óptimo comigo, fez tudo o que pôde. Mas ficou sempre a falta da minha mãe, dos assuntos inacabados, a indiferença dela, tudo o que não disse, a dúvida a incerteza.
Daí o meu comportamento com o meu ex-namorado. Quando estava insegura tinha medo de o perder, quando não estava insegura canalizava para ele todas aquelas frustrações, todos aqueles anos de dúvida e de zangas inacabadas… e nem me apercebia que era isso que estava a fazer. Coisa engraçada, estas emoções e o passado que nos revisita quando não esperamos.
Com o tempo consegui perceber este meu padrão e consegui pô-lo de parte, deixar de o viver, de o encenar.
Agora carrego comigo uma cicatriz emocional, mas é apenas cicatriz, já não é ferida aberta. A memória de tudo o que a minha mãe não foi já não me atormenta, posso escolher não ser como ela.
Agora, no hoje, no presente vivo o que tiver de viver. A responsabilidade de ser mãe é uma alegria. A alegria de estar bem casada liberta-me para viver a vida. Já não tenho de estar sempre a pensar se o vou perder. Pode acontecer, tudo pode sempre acontecer, mas, entretanto, posso viver!”
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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