Uma história sobre voltar a acreditar.
Um homem nunca acerta, é o que tenho aprendido. Quanto mais se tenta, mais sai ao lado.
Tenho vindo a aprender a não tentar, mas a ser mais, a estar mais.
Onde é que comecei a perceber que alguma coisa não estava bem? Quando a minha miúda mais nova se passou. Ela saiu da escola a meio das aulas, faltou a um teste, foi pro shopping. A minha mulher soube porque uma das amigas da nossa filha ligou-lhe a avisar que ela não estava na escola, não estava a atender o telemóvel e que “não andava bem”.
A minha mulher foi dar com ela lá no centro comercial. Parece que estava sentada num café há horas. Parecia exausta, tinha estado a chorar, estava a tremer.
Foi vista por um médico, passou-lhe antidepressivos e recomendou descanso. Ela ficou duas semanas em casa. Parecia mais tranquila, mas dizia que não estava melhor.
Tentou voltar às aulas, dizia que não estava a aguentar. A minha filha mais velha disse que percebia perfeitamente, só não percebia porque é que não tinha acontecido mais cedo.
Fiquei muito confuso. O que é que se estava a passar? O que é que pareciam todas saber que eu não sabia? A minha mulher também não parecia muito surpresa.
Quando tentei falar sobre isso com elas, nenhuma parecia muito disponível para falar do assunto.
A mais nova começou a fazer terapia. Passado pouco tempo foi sugerido que fizéssemos algumas sessões de terapia familiar. Ao fim de duas sessões em família foi-me recomendado fazer terapia. Eu não percebi, eu não me sentia mal, comigo estava tudo bem, parecia-me absurdo pensar que eu é que precisava de ajuda.
Mas todas insistiram e eu não queria que as minhas filhas voltassem a sentir-se mal, mesmo que eu não percebesse o que é que se estava a passar. Aceitei.
Olhando para trás acho que foi tudo combinado para conseguir que eu procurasse ajuda. Tenho a sorte de ter uma família que me apoia e que além disso… foi capaz de resolver um problema.
Sou mais teimoso do que pensava, tive muito tempo em terapia, o psicólogo teve que me desafiar muitas vezes até eu começar a ver para além das minhas certezas.
Comigo estava tudo bem, nada a apontar. Só que não. Como é que posso descrever isto para fazer sentido? Imaginem um carro com um motor muito potente, que é usado há muito tempo.
É fiável e previsível, não parece ter problemas, até ao dia em que vai ao mecânico e põe amortecedores novos, pneus novos e troca o óleo. De repente parece um carro novo, suave, manobrável, divertido, nem parece o mesmo. O desgaste das peças foi gradual, nem deu para perceber que já não era o mesmo, só depois de mudar é que ficou evidente.
Pronto é isso, acho que foi assim comigo. Não percebi que estava a precisar de trocar as peças no pensamento. Sempre fui um tipo descontraído, “na boa”, mas de alguma forma levei a minha filha mais nova a ter ataques de pânico, a minha filha mais velha a isolar-se completamente em casa e a minha mulher ao desespero.
Mais vale contar: em miúdo eu era um baldas, estudava o mínimo para me safar, passava demasiado tempo com amigos, fumava “um bocadinho” de tudo o que me passavam. Os meus pais andavam sempre na vida deles, não sabiam. Fui-me orientando. Infelizmente vi amigos meus a irem por aí abaixo… dois deles não chegaram aos 21.
Terminei o secundário com uma média que não servia para nada. Fiz uma data de trabalhos, anos mais tarde voltei a estudar, tirei gestão. Arranjei este e aquele emprego até acertar no meu emprego actual, que me dá a mim e à minha família uma boa almofada financeira.
Uma pessoa quer sempre que os filhos façam melhor, não é? Eu queria que as minhas filhas percebessem o que eu percebi, queria que não tivessem que perder os anos que eu perdi até acertar no caminho profissional certo. Não queria que crescessem com pais ausentes como eu cresci. Não queria que fossem por maus caminhos (nunca me esqueci dos amigos que não voltaram).
De boas intenções está feito o caminho para o inferno, não é?
O que é que aconteceu? Que pai é que me tornei?
Sem querer tornei-me exigente demais, criei a expectativa de que se devia ir sempre mais além. Tornei-me obcecado com regras, focado em perigos que não existiam. Adoro a minha família, isso nunca esteve em causa. Tornei-me foi um bocado insuportável. A minha mulher há muito que me pedia para exigir menos das miúdas, eu tentava. Mas sempre que eu relaxava, ela relaxava ainda mais, parecia um concurso para ver quem era o mais “fixe”. Parecia que eu era sempre empurrado de volta ao meu papel, senão a casa ficava de pantanas e os estudos das miúdas ficavam por fazer.
Serviu de muito? Nem por isso, a mais velha fuma, conhece boas e más pessoas, gosta de estudar, mas não sabe muito bem o que quer estudar. A única coisa que consegui foi ensiná-la a esconder-se de mim. A mais nova, coitada, tentou ir ao encontro das minhas expectativas e estalou. Deprimiu, sentia-se inútil, incapaz (estamos a falar de uma miúda que tira sempre notas altas ou muito altas).
Eu percebi que em muitas coisas a vida dos miúdos de hoje é igual à vida no meu tempo, mas em tantas outras não é, as pressões são muito diferentes. Os caminhos a seguir são muito mais confusos, a escola não está adequada às novas tecnologias. De que serve decorar informação e não aprender a pesquisar correctamente na net? De que serve ouvirem histórias sobre como no tempo dos professores é que era, mas não aprenderem a verificar se as informações que partilham numa rede social são verdadeiras ou não?
Posto isto, de que serve eu ter um conjunto de exigências e expectativas para com elas se nem eu tive essas exigências a crescer, nem os objectivos são iguais aos do meu tempo?
Eu aprendi a mudar, aprendi a relaxar, a deixar viver sem tentar encaminhar a vida da minha família por onde me parecia ser certo.
Não foi logo, mas aconteceu: a mais nova voltou a equilibrar-se, precisou ainda de alguma ajuda, mas conseguiu. A mais velha fala muito mais em casa, tem opiniões muito diferentes das minhas, mas sabe fundamentar o que diz, fiquei fascinado.
A minha mulher está mais calma, organiza as coisas mais à maneira dela e eu ando muito menos stressado. O ambiente em casa tem muito mais de lar agora do que antigamente e acho que gostamos todos disso.
Em breve começam a sair de casa, quero aproveitar este tempo para deixá-las viver e ser quem são. Tenho visto que elas se orientam muito bem sem que eu lhes diga o que fazer! Posso ficar nervoso, sou pai, não tenho certezas, mas aprendi que não tenho de ter medo.
A vida é curta. Os filhos não são o que queremos, são quem são.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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Michael Dickinson