Bem-me-quer, mal-me-quer
Uma história sobre um amor doente
Durante muito tempo eu não quis acreditar que esta foi a minha história, hoje não sei porque é que me importava tanto.
Hoje tenho 42 anos e sinto-me mais “eu” do que alguma vez pensei poder sentir. Mas teve de acontecer tanta coisa para chegar aqui.
Aos 38 descobri que não ia poder ter filhos, fiquei profundamente desiludida e magoada, culpei a vida, culpei o meu companheiro da altura, culpei o meu emprego, enfim. Demorei algum tempo a aceitar que foi uma escolha minha deixar tudo para “depois”.
Quase 15 andei a culpar outra pessoa pelo meu mal-estar, era por ele que a minha vida estava como estava, era por ele que ainda não tinha filhos, era por ele que eu dormia mal. F*da-se quase 15 anos! Quem está mal, muda-se! Isso digo eu agora, na altura não via as coisas assim.
Eu cresci a ouvir a minha mãe a dizer que não se devia ter casado com o meu pai, que devia ter sido livre. Estranhamente nunca me ocorreu perceber como isso era ofensivo para mim, um dos 3 descendentes do seu casamento. Via só que era a “mais querida” por ser a mais nova e por ser a única rapariga e que por isso a minha mãe confidenciava-me estas coisas.
No início dos meus 20s, enquanto tirava o curso, arranjei um namorado todo “certo”. Conseguia ver o resto da minha vida com ele, filhos, almoços com os sogros aos domingos, queria muito manter-me com ele, mas sentia-me claustrofóbica. “Sem querer” envolvi-me com um amigo meu. Era uma coisa que acontecia pontualmente, eu nem queria, mas depois acontecia, enfim. Andei nisto 1 ano, até que conheci um outro rapaz, aventureiro, intenso, apaixonado. Eu disse-lhe que não, até que um dia, num almoço de domingo, ele parou perto da minha casa, de moto, e mandou-me mensagem a dizer para fugir com ele. Eu cedi ao impulso e fui!
Foram uns meses intensos, incríveis, entreguei-me completamente à paixão.
Depois voltámos à vida real. Tive que lidar com o que tinha feito, mantive o contacto com o meu ex-namorado, mas ele nunca mais me deu hipótese. Hoje tem uma família linda!
A minha profissão é muito exigente, ainda mais quando o pessoal ainda não fez os 30. Éramos carne para canhão, directas a trabalhar e tudo isso. A relação sofreu, ele traiu-me, íamos acabando, mas fizemos as pazes e foi novamente intenso e apaixonado. Decidi que ia organizar-me e “dar a volta por cima”.
Aos 30 íamos acabando novamente, eu andava deprimida. Depois melhorei e ele ficou deprimido. Depois decidimos ir de férias prolongadas para a América do Sul, ver aquela natureza incrível. Foi uma aventura. Ia tudo melhorar, reencontrámos a nossa esperança. Algum tempo depois eu comecei a achar que seria uma boa altura para ter filhos, mas depois morreu a mãe dele e esperei que ele fizesse o luto. 2 anos mais tarde quando voltei a pensar nisso, o meu pai faleceu. Aí ele não conseguiu lidar com a minha depressão e saiu de casa, arranjou outra. Uns meses depois voltámos a encontrar-nos e foi novamente a paixão.
Não quero admiti-lo, mas a verdade é que isto aconteceu uma data de vezes. As coisas iam sempre melhorar, era só passar “aquela fase”. Mas não era uma fase, era um padrão.
Eu aceitava-o sempre de volta, ia ser diferente desta vez. As infidelidades dele não me pareciam importantes comparadas com tudo aquilo que tínhamos passado juntos, comparadas com aquela paixão. Nunca consegui ser objectiva com ele. Aceitei as mentiras, as zangas, as tristezas.
Hoje sei que aquela m*rda toda me dava um jeito perverso do caraças. Enquanto perdia tempo com ele, “à espera” que isto ou aquilo passasse para podermos “estar bem”, não tinha que me comprometer com nada, podia fugir da responsabilidade de tomar qualquer tipo de escolha na vida. Os filhos viriam “um dia”, tempo pessoal de qualidade fora do emprego também iria acontecer. Até lá eu “aproveitava” para trabalhar ao máximo possível, aproveitava o que tinha e o resto ia acontecer por si mesmo.
Nunca percebi que esta coisa de se ser adulto não é uma coisa que aconteça simplesmente, nunca percebi que eu tinha que tomar a iniciativa senão ia andar assim toda a vida. Agora parece óbvio, não é? Mas não era. Eu sabia onde estava e onde um dia queria estar, mas não fazia ideia do que ia acontecer entretanto.
Sabes aqueles dias em que tás em casa, sozinha, com a casa toda por arrumar, tás constantemente quase a começar e de repente já é de noite e não fizeste nada? Foi assim comigo durante uma década e meia, a vida estava sempre prestes a começar e de repente tinha 38 anos e 3 médicas diferentes a confirmar que eu nunca ia poder engravidar.
Aí não deprimi. Fiquei furiosa, não consigo descrever. Senti que era a maior injustiça de sempre, quis desesperadamente voltar atrás no tempo e fazer tudo de outra forma, queria nunca ter conhecido aquele homem inútil, tantas coisas… andei a patinar um bocado.
Comecei a ter consultas de Psicologia. Aprendi a olhar para mim, para esta montanha de escolhas que não queria admitir.
Descobri que preferia estar sozinha, descobri que tinha deixado de amar aquele tipo há anos. Afastei-me de vez, sem olhar para trás. Aceitei que a minha vida era o resultado das minhas escolhas.
Vivi 5 anos profundamente tranquilos depois de me aceitar, depois de perceber de onde vinham os medos que me condicionavam. A minha carreira estabilizou. Reduzi brutalmente o meu horário de trabalho. Deixei de ter preocupações financeiras. Participo mais na vida da minha família, dos meus sobrinhos todos. Vou viajar por mim, por mais ninguém, gosto de viajar sozinha.
Certo dia conheci um homem, viúvo muito antes do tempo, encantador, com 2 filhas. Estamos a namorar, sinto-me em paz e segura com ele. Ele ainda não me deixou conhecer pessoalmente as filhas, diz que isso será só se isto for para ser sério. Gosto da ideia de ser uma decisão séria, para tomar ponderadamente.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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