Uma história sem começo.
“Uma criança apenas está sozinha na presença de alguém.” ― D.W. Winnicott
Para contar uma história tenta-se contar do início, mas não sei quando é que isso foi. Sempre fui deprimida, tenho memórias desde os 4 anos de idade em que era infeliz, nessa altura já queria voltar atrás para “um tempo melhor”.
Fixava-me nesta ideia nos piores momentos, ficava obcecada, a procurar respostas no passado, caía numa espiral descendente e desesperante… focava-me nesta ideia do início da minha vida, se tinha sido feliz ou se era demasiado nova para ser infeliz.
Sofria de um saudosismo pesado de algo que nunca foi, perdia-me no passado, em mim mesma… sentia-me frequentemente surpresa por ainda estar viva, já que sentia tão pouca vontade de viver.
Pensava que isto pudesse ser de uma outra vida, procurei hipnose regressiva para procurar respostas noutras vidas, apesar de ter sido interessante não encontrei paz… tentava meditar, mas perdia-me dentro de mim mesma, no mesmo buraco de sempre… não tinha capacidade de concentração para tal coisa. Das poucas vezes que conseguia assustava-me muito com a possibilidade de encontrar alguma coisa dentro de mim… e assim foi… uma procura seguia-se à outra…, mas a procura nada mais era que uma fuga.
Nunca poderia tê-lo admitido a mim própria, ainda não estava pronta, precisava de procurar para fugir, para ter um propósito. Nas alturas em que me sentia sem propósito o mundo inteiro engolia-me, sentia-me a desaparecer dentro de mim mesma. Perdia a mais ténue referência daquilo que queria sentir, o que poderia ser a “normalidade” dos outros, como poderia ser, sendo não feliz, mas pelo menos não estar assim…
Eu nasci fora de tempo, os meus pais não contavam já comigo, não esperavam que eu viesse ao mundo. A minha mãe tinha 40 anos quando eu nasci, foi uma gravidez de risco, mas ainda assim ela insistiu em trabalhar durante a gravidez, advogada, tinha muito trabalho, era muito dedicada ao que fazia. Sempre me contaram isto como sendo sinónimo do valor dela, sempre senti de outra forma…
O meu nascimento foi complicado, a minha mãe ficou internada uns meses no hospital, não sei ao certo quanto tempo fiquei lá com ela, quanto tempo fiquei com o meu pai em casa antes dela.
Quando ela melhorou e voltou para casa, foi-se abaixo, deprimiu. Para lutar contra a depressão voltou assim que pôde ao trabalho. Eu ficava com uma ama e com o meu pai nessas alturas. Ainda hoje lembro-me da ama, chorei muito quando ela se foi embora, tinha eu 4 anos.
Ao crescer, na escola, eu ficava no meu canto, isolava-me. Dizem-me que me apegava muito às professoras, que não as largava. A minha mãe sempre disse que eu era frágil, sensível, carente.
A minha adolescência seguiu, infelizmente, pelo mesmo caminho. Continuei com dificuldade em ter bons amigos… quando alguém se aproximava mais, acho que exigia demais e por isso afastavam-se, ninguém me explicava o que é que eu fazia de errado. Às vezes tinha boas notas, muitas outras vezes nem por isso, foi ficando difícil ir sempre à escola, cumprir os horários. Fui-me safando com explicadoras, eu gostava muito delas.
Algumas pessoas foram reparando que eu não estava bem, mas por um ou outro motivo não tive ajuda profissional consistente até aos 19 anos… ainda não sei porque é que demorou tanto. Aos 19, ou pela idade ou por outro motivo qualquer, o imenso mal-estar que vivia em mim começou a passar para fora como não tinha ainda acontecido.
Não me lembro bem dessa altura, fica meio confuso quando penso nisso, lembro-me de gritar muito, de ver punhados do meu cabelo nas minhas mãos, cortei-me, arranhei-me… acho que foi feio de se ver, mas ainda assim acho que foi melhor do que continuar a guardar para dentro. Até ali pensava que se alguém libertasse a dor que estava em mim que isso iria devorar o mundo inteiro… bom, o mundo ainda aqui está, não é?
Comecei terapia com um psicólogo, não sei onde é que ele ia buscar paciência para me ouvir a falar das mesmas coisas tanto tempo, mas estava lá sempre, à minha espera. No início não senti que me ajudasse, mas as pessoas à minha volta diziam-me que eu estava melhor, por isso alguma coisa estava a acontecer. Foram alguns anos, foi muito difícil, tive que confiar muito: primeiro no psicólogo e depois, aos poucos, em mim.
Como é que eu saí daquilo? Como é que melhorei?
É difícil pôr em palavras tudo o que fiz e aprendi, mas acho que o mais importante foi quando escolhi desistir. Eu sei, não bate certo. Foi quando escolhi desistir da vontade de ser reparada, corrigida, salva e decidi escolher a mudança. Eu vivia focada nesta ideia de ir lá atrás no tempo e corrigir tudo o que estava mal, mas isso não é possível, não consegui. Eu não tinha nada que conseguisse reparar, por isso escolhi transformar. É uma diferença subtil, mas profunda.
Por isso comecei por conseguir aceitar a minha história e descobri o potencial de mudança e transformação em mim mesma. Pareço uma frase motivacional num postal de natal, bem sei, mas foi isso. Muito tempo andei a aprender a fazê-lo, a olhar para mim, a conhecer-me, a perceber o que poderia ser no presente e no futuro quando largasse as saudades de um passado que não foi.
Terminei o 12º, estudei escrita, artes, audiovisual. Hoje trabalho em produções televisivas, gosto muito do que faço. Comecei como estagiária, foi tão divertido, tratavam-me tão mal, mas por dentro eu ria-me “acham que isso é maltratar alguém? Não fazem ideia o que já passei!”. Tive colegas que não aguentaram, eu descobri que afinal de contas com o que eu tinha passado os stresses do trabalho não eram, de todo, difíceis de aturar. Percebi que com os anos de andar obcecada a analisar tudo fiquei com uma capacidade de empatia acima da média para perceber os outros, as suas necessidades, mas ao mesmo tempo, uma capacidade de tolerar situações difíceis igualmente elevada.
Aprendi também a deixar de estar zangada/desiludida com a minha mãe, ela não foi má. Nós nunca nos conseguimos encontrar no momento certo. Ela queria tanto conhecer-me quando nasci, mas ficou internada, meio cá meio lá a acordar e a adormecer. Depois sentiu-se a mais quando foi para casa e percebeu que o meu pai estava a conseguir orientar-se comigo, quis fugir. Isso, infelizmente, tornou-se a nossa forma de estar, nunca nos encontrávamos, quando eu queria estar com ela, ela fugia, quando ela queria estar comigo, eu estava noutra… desencontrámo-nos e ambos ficámos magoadas com isso. Podia continuar zangada, dizer que ela teve culpa, mas isso não me ajuda.
Se ainda sou aquela criança perdida? Ainda tenho a memória comigo, mas já não sou. Se a tratei, se a curei? Não. Deixei-a ir, deixei-a morrer, deixei de esperar que alguém a salvasse, a curasse. Aprendi o que podia ser, o que podia transformar. Nem sempre se percebe a origem de tudo e, às vezes, mesmo quando se percebe, isso não muda nada. Por vezes o único caminho é aceitar e evoluir.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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