Uma história sobre as consequências de se exigir demais a uma criança
Esta manhã passei pelo café a caminho do trabalho, levei o café para a rua para sentir o frio da manhã. Enquanto pensava na rotina de trabalho, passaram por mim 3 mulheres, jovens, 20 e tais. Uma delas tinha um perfume que não consigo bem encontrar na memória, mas lembrou-me os meus 20s, lembrou-me a namorada que tive, as saídas à noite, a promessa da vida pela frente e o frenesim de sentir tudo ao mesmo tempo.
Pela primeira vez desde que me lembro, senti e pensei nisto tudo e senti-me bem. Não me senti invadido pela nostalgia destrutiva de pensar em tudo o que faria de forma diferente se fosse novamente miúdo, não me senti zangado com tudo o que correu mal, nem senti aquele impulso palerma de ir ter com as miúdas e deslumbrá-las com tudo o que aprendi e sou. Pela primeira vez pude olhar para todo esse lado da minha história e sentir os meus 43 anos sem ressentimentos, sem assuntos presos na garganta. Senti-me feliz por elas, desejei-lhes silenciosamente felicidades e continuei o meu dia.
Nem sempre foi assim. Houve um momento em que a minha fúria, a minha raiva para com a vida quase devorou tudo o que tinha. Vi o meu casamento desmoronar, os meus filhos sempre nervosos na minha presença, os silêncios pesados em casa.
“Ou fazes terapia ou sais de casa.” A frase da minha mulher que mudou o rumo das nossas vidas. Espero mesmo que a nova geração tenha mais facilidade em pedir ajuda do que a minha.
Eu vivia numa agitação permanente, saltando de obrigação em obrigação, o próximo projecto, o próximo objectivo, a próxima coisa. No fundo do pensamento havia uma ladainha silenciosa: “faz a tua parte e tudo o resto se encaixa.”
Não conseguia perceber como, no meio de tanto esforço que eu fazia no dia-a-dia, ainda assim as coisas corriam mal em casa. Qualquer interação com os miúdos parecia dar asneira, tinha sempre uma qualquer discussão pendente com a minha mulher, sentia-me sempre em falta, mas também sentia sempre todos em falta comigo.
Estava tudo a correr bem no trabalho. Mas sentia sempre que ainda faltava imenso.
Fiz terapia. Falava dos stresses no trabalho, falava do mal que sentia no presente, aliviava um bocado, mas não melhorava assim tanto. Foi só uns meses depois, quando comecei a falar de uma coisa que eu achava não ser assunto sequer: a minha infância.
Sempre achei que aquela coisa de não se poder exigir muito das crianças era sinal de fraqueza. Eu sempre fui empurrado para fazer melhor e safei-me. Era isso que dizia a mim mesmo. Quando comecei a olhar para além dessas frases feitas e a avaliar o impacto que teve em mim ser “incentivado” a fazer melhor, passei um mau bocado. Era uma ilusão que me mantinha funcional. Quebrá-la doeu. Muito.
De tudo o que revi e aprendi sobre o que passei em miúdo, a parte que consigo relatar é a brutalidade fria com que fui conduzido a ter mais “resultados”. Estava sempre tudo prestes a ficar bem. “Tens que tirar boa nota!”, “Tens que te aplicar nos treinos!”, nas férias de verão: “se estudares o suficiente, ao fim do dia podes ir um bocado à praia.”
Mas depois das boas notas eu recebia indiferença, depois de me aplicar nos treinos não havia espaço para partilhar porque estava a dar o telejornal, quando acabava os estudos nunca havia tempo para ir para a praia. A dada altura acho que percebi, mas não quis aceitar, que este rol interminável de tarefas (disfarçado de incentivos) era uma forma dos meus pais simplesmente não interagirem comigo. Cada um deles estava tão perdido no seu próprio mundo que nem se davam conta que me empurravam para longe deles.
Quando eu me tornei pai, quis amar, quis fazer o melhor que sabia. Mas a minha base relacional era a exigência: eu exigia de todos à minha volta enquanto me dedicava às minhas tarefas. Esquecia-me facilmente de investir nas interacções boas com os miúdos. Para mim a parte boa era quando cada um podia estar tranquilo no seu canto sem tarefas… vejo agora o vazio que estava a criar à minha volta.
Para mudar, nem sei bem o que dizer, tive que me zangar com o meu passado, tive que odiar os meus pais uns tempos, tive que os perceber e de algum modo aceitar e até perdoá-los. Só depois de um tempo é que consegui começar a sentir que estava capaz de abraçar e aceitar a minha vida como plena no aqui e agora. Como minha e não como um perpetuar de uma missão que nunca percebi.
Não se trata de estar sempre feliz, mas trata-se de estar a viver agora comigo e com aqueles que estão à minha volta de uma forma real e não hipotecada.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.