Uma história sobre deixar de odiar.

 

Nunca teria pedido ajuda. Nunca me tinha passado pela cabeça que poderia estar mal de alguma forma. A vida era assim, eu tinha bons dias e depois havia dias em que alguém fazia m*rda e estragava-me o dia. Acordava ok, na minha, vivia sozinho, depois a caminho do trabalho havia alguém nos transportes que cheirava mal, depois alguém no café que me passava à frente no balcão, depois quando entrava via que alguém tinha mandado de volta o meu email sem tratar daquilo que eu tinha pedido para tratar. Eu não pensava nisto, não pensava em mim, como é que eu estava. Só sabia que estas coisas me irritavam imenso e não sabia propriamente como é que me sentia o resto do tempo. Namorei com uma miúda e depois outra que me diziam que eu andava sempre chateado, nem liguei, achei que era conversa para começarem a tentar mandar na minha vida, despachei-as ao fim de pouco tempo.

Naquele tempo acontecia-me uma coisa, eu nem ligava, achava que toda a gente teria alguma coisa mais ou menos assim a vir ao pensamento: quando passava por multidões imaginava que de repente um carro se despistava e batia naquelas pessoas todas, imaginava com imensos pormenores, os sons, as cores, os cheiros, chegava a emocionar-me, a querer ir ajudar, depois passava.

Dormia mal, inquieto, sempre a pensar que me tinha esquecido de alguma coisa. A minha vida não era má, era só neutra, eu achava que era mesmo assim, nunca tinha conhecido outra coisa.

Depois vi o filme, Matrix, com o Keanu Reeves, e a cena em que o patrão está a implicar com ele, mas ele só consegue olhar para o homem que limpa o vidro do outro lado da janela, ficou comigo. Estava sempre no meu pensamento. Sentia que vivia num aquário, isolado, a nadar em círculos.

Nessa altura eu transpirava imenso, tinha que escolher a roupa com cuidado para não se notarem as manchas, tinha que andar sempre com uma muda de t-shirt ou camisa, evitava abraçar as pessoas, não fosse alguém notar. Depois do filme comecei a isolar-me mais, a irritar-me mais, mas nunca parei para pensar nisso, era como se só conseguisse olhar para fora e não para dentro.

Na net eu falava com pessoas em vários fóruns, às vezes era a única forma de me sentir à vontade para falar. Comecei a falar com uma rapariga, que andava na terapia. Tive imensa curiosidade, nunca tinha conhecido alguém a fazer terapia, fiz imensas perguntas, até que ela um dia me perguntou porque é que eu queria saber tanto sobre o tema, porque é que eu não procurava ajuda para mim.

Eu achei a ideia disparatada, não tinha necessidade nenhuma, achava. Ela devolveu-me algumas das minhas descrições do meu dia-a-dia… foi a primeira vez que pensei que alguma coisa podia não estar bem.

Ela deu-me o contacto do psicólogo dela e fui lá.

No início nem sei bem o que é que me manteve a ir às sessões, sabia-me bem falar com alguém que não me ia pedir nada, fui falando e falando. Não sabia o que queria daquilo. Um dia percebi que estava a transpirar muito menos e isso foi estranho.

Fui falar disso ao psicólogo, perguntei-lhe porque é que isso estaria a acontecer. Ele perguntou-me se me sentia menos ansioso. Eu não sabia responder, só sabia dizer que me sentia menos zangado.

E assim foi, o início de perceber que a minha vida podia começar a mudar se eu continuasse a falar das coisas que estavam dentro de mim. Até então pareciam coisas normais… depois percebi que normal não existe… depois percebi que a vida que tive, a crescer, me magoou muito, muito mesmo. Pensava que não era nada, que não tinha nada para me queixar, mas afinal foi muito.

Não me lembro assim muito da infância, lembro-me de ouvir as funcionárias lá do ATL a comentar que eu era o menino que ficava mais tempo lá… lembro-me que eu ficava sempre mais tempo na escola, nos horários de estudo, nas actividades que houvesse.

Lembro-me, mais tarde, que quando chegava a casa com o meu pai ou a minha mãe, tinha que ir ao banho, jantar e dormir que era sempre já tarde.

Acho que isso era normal, mas o que me marcou foi que me sentia sempre a mais, sentia sempre que não havia vontade de estarem comigo. Fui aceitando, fui fazendo as minhas coisas.

Ao fim-de-semana a minha mãe fazia compras, o meu pai dormia até tarde. Via-se televisão e limpava-se a casa. Raramente íamos a algum lado, quando eu pedia para irmos sair ouvia coisas do género: “Mas pensas que isto é o quê?! Não somos ricos!” e eu calava-me.

Na altura aceitei, hoje quero voltar a esse tempo e dar um par de estalos à minha mãe e ao meu pai! Qual era a necessidade de serem tão miseráveis? Qual era a necessidade de nunca quererem fazer nada? Para quê viver se era só para cumprir rotinas da treta? Porque é que me tiveram se não tinham interesse nenhum em mim?!

Quando percebi isto andei furioso uns tempos, já não era só uma irritação de fundo, era uma fúria quase descontrolada. Sentia que me tinham roubado a infância, não por causa de algum desastre, de uma guerra ou qualquer coisa assim, mas apenas por falta de vontade, por apatia, por desistência, por pobreza de espírito. Pior, quando eu queria quebrar aquele ciclo explicavam-me o quão idiota eu era por querer.

Nunca pensei que isto tivesse ficado guardado dentro de mim, que me tivesse afectado tanto, que me deixasse com esta zanga em lume brando para sempre, esta frustração sem nome.

Falei tantas vezes sobre isto, até enjoar, tentei perdoá-los, não sei se consegui. Acho que aceitei que aconteceu.

Sei que quando deixei de estar zangado fiquei muito triste, deprimi uns tempos, acho que fiz o luto de tudo aquilo que não pude ser.

Depois comecei o caminho de volta, um caminho novo, virado para a vida. Percebi que estava a recriar aquela meia vida dos meus pais, preso ao quotidiano, sem sentir, sem querer nada em particular. Decidi que não queria isso para mim. Comecei a sentir cada vez mais, comecei a ter vontades, conheci pessoas novas, diferentes. É tão estranho olhar para a minha vida agora e antes, em tantas coisas igual, mas em tantas mais até podia ser a vida de duas pessoas diferentes.

Agora nem sei como é que era capaz de viver como vivia.

Do que é que eu sofria? Qual era a minha doença? Sinceramente nem quero saber, sei que sou uma pessoa diferente hoje.

 

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

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