Dor na alma, dor no corpo

Uma história sobre ficar com o corpo doente porque a mente não aguentou

 

Muitas vezes sentia que nunca tinha vivido. Acho que não é o mesmo que se vê nos filmes, quando a mulher diz que sempre teve uma vida desinteressante, acho que era diferente. É como se não houvesse nada. Houve acontecimentos, passei por coisas, conheci pessoas, fiz por namorar, etc., mas eu não era nada, como se não soubesse como estar viva. Mas pronto, isso digo agora porque já vi como é sentir. Se me tivessem falado disto há uns anos acho que nem ia saber do que estavam a falar… a vida era assim…

Aos 22 anos, quando não tinha grandes obrigações, já tinha a escola feita, tava a trabalhar, fazia-se bem, vivia com a minha mãe e não estava preocupada com o que ia fazer dali para a frente, comecei a ficar doente.

Primeiro foram as dores de cabeça, mais tarde enxaquecas. Ficava 2 ou 3 dias sem conseguir sair do quarto, não conseguia ver luz nenhuma nem ouvir som nenhum, as náuseas eram insuportáveis, não havia nada que me aliviasse. Depois começou a acontecer menos, mas comecei a ter dores nas articulações, como se fosse velha, comecei a andar com imensas preocupações para não me aleijar. Depois, volta e meia tinha uns apertos fortíssimos no peito, parecia que me estavam a esmagar, não conseguia respirar. Fui às urgências algumas vezes.

Das primeiras vezes levaram-me a sério, mas não conseguiram perceber o que se passava. Deram-me umas coisas para me acalmar e aquilo passava. Depois quando lá ia parar outra vez cheguei a ouvir “menina, isso é da sua cabeça, não tem nada, não precisa de vir aqui.”

Isso só me fez sentir pior, não sabia o que se passava comigo, até podia ser da cabeça, mas e depois? Eu estava a passar bem mal, porque é que não me ajudavam?

Mandaram-me para o psiquiatra, eu não me sentia maluca, mas disseram-me que tinha de ser. Saí de lá com uns remédios que me deixaram maldisposta, não conseguia trabalhar com aquilo. Disseram-me que tinha de me habituar, mas eu não consegui.

Acabei por ir ao psicólogo, não sabia o que é que ia dizer, mas disseram-me que tinha de me “tratar”. As primeiras duas vezes que lá fui não fizeram sentido, eu dizia-lhe que tinha dores, que me sentia doente, que não conseguia fazer esforços sem me cansar, mas ele perguntava-me como é que eu me sentia??? Eu tinha acabado de dizer como é que me sentia!

Ele perguntou-me se eu sabia a diferença entre sentir no corpo e sentir com as emoções. Eu respondi a dizer “claro que sim!”, mas a verdade é que não sabia nessa altura.

Não voltei lá mais, achei aquilo um disparate, mas a pergunta ficou na minha cabeça, não desapareceu.

Uns meses mais tarde eu fiquei muito pior, tava a ver que não ia conseguir trabalhar mais. A minha chefe, que é minha amiga disse-me: “eu sei que andas a passar mal, mas assim não vai dar para continuar, não posso continuar a ter-te cá assim. Por isso, ou voltas lá ao psicólogo ou vou ter de pedir-te para sair.” Eu fiquei parva, não sabia que andava a empatar assim tanto o serviço, nunca pensei que fosse despedida.

Voltei às consultas, decidi que ia levar aquilo a sério.

Comecei a contar a minha história. A minha mãe foi maltratada pelo meu pai, fugiu dele quando eu tinha 2 anos, fomos viver para o outro lado do país. Ela arranjou um trabalho, fazia muitas horas extra para ter dinheiro suficiente. Eu desde sempre que a vi a sofrer. Dizia sempre para não dar nas vistas, tinha sempre medo que o meu pai nos encontrasse, acho que ele nunca quis saber. Eu tentava não dar nas vistas na escola, não fazia amigos, mesmo ficando sempre até tarde à espera da minha mãe ou da senhora lá do prédio que tomava conta de mim.

Só via a minha mãe à noite e de manhã, mesmo ao fim-de-semana não a via muito. Quando a via não lhe pedia nada porque ela estava sempre cansada e à noite ouvia-a a chorar. Eu nunca queria magoá-la ou deixá-la preocupada. Aprendi a crescer assim, sem me envolver em nada. Na verdade, cresci meio abandonada apesar de não perceber na altura. Cresci sem viver, sem saber o que fazer senão o que me diziam para fazer. Eu não queria nada, não sonhava com nada, não dava chatices a ninguém e isso parecia funcionar.

Contei isto assim ao psicólogo, contei muitas vezes, ele fazia-me mais perguntas, não percebia que mais é que ele queria saber, até ao dia em que consegui não ter pena do que a minha mãe passou, pelo menos em parte, e percebi uma coisa que nunca sonhei:

Eu estava furiosa com ela!! Subiu-me uma raiva tal que só queria gritar, berrar, estrangulá-la, exigir que ela fosse lá atrás, se deixasse de m*rdas, confrontasse o meu pai e pôr-me com alguém que fosse família, que não me deixassem crescer sozinha!!!

Nunca pensei sentir tanta raiva com tanta força… precisei de muita ajuda para lidar com aquilo. Eu pensava que por compreender o que a minha mãe estava a passar que não podia estar zangada com ela, mas afinal estava, não sei se era muito racional ou não, mas era o que sentia.

Demorei muito tempo até conseguir fazer as pazes com ela, hoje em dia estamos bem, mas precisei desse espaço para lidar comigo mesma. Eu percebia as razões dela, não a conseguia culpar, mas sentia-me zangada.

Com essa zanga consegui começar a sentir tudo o resto, todas as emoções ficaram mais fortes, comecei a ter sonhos, não me lembro se antigamente tinha sonhos, mas acho que não.

Comecei a querer coisas, comecei a querer conhecer mais pessoas, a aprender novas coisas, a viajar, a ter outros trabalhos. Tinha tanta energia que me custava dormir.

Depois, lá fui encaixando tudo, tive a ajuda do psicólogo o tempo todo, para não descarrilar…

O meu trauma foi este, cresci num lugar emocional que não era lugar, fiquei perdida no meio do que a minha mãe passou a aprendi que não podia ter opinião sobre isso, que era assim mesmo e que ela, sofredora, tinha sido muito forte para fazer o que fez e eu não lhe podia fazer a vida difícil, fechei as minhas emoções todas à espera que a vida melhorasse, mas nunca mudou, ela é assim, deprimida e sofredora, não enfrenta ninguém, mas à sua maneira gosta muito de mim e fez tudo o que sabia fazer por mim.

Todas estas emoções que eu bloqueei, sem saber que bloqueava, tinham que sair por algum lado e começaram a deixar-me com o corpo doente, com sintomas que não percebia.

Quando comecei a sentir as emoções a voltar deixei de estar doente, nunca mais precisei de tomar nada, pelo menos nada fora do normal.

Hoje em dia tenho amigos, faço sempre alguma coisa quando não estou a trabalhar, nunca mais passei os fins-de-semana de pijama em casa. Há demasiadas coisas para fazer e sentir!!

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

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