Uma história sobre o poder da destruição herdada

 

Eu entendo aquela nostalgia romântica que algumas pessoas sentem quando dizem que não se importavam de voltar a passar pelas dificuldades na vida para reencontrarem aqueles momentos de conquista e vitória. Entendo, mas nunca iria querer passar por tudo o que passei de mal outra vez. Guardo as aprendizagens, mas nem pensar que preciso de voltar àquela confusão.

No início, quando procurei ajuda na terapia, tinha uma ideia solta sobre a minha falta de autoestima, falta de confiança em mim… sabia tão pouco.

Mas foi aí que comecei. Queria tentar perceber porque é que me sentia assim com as outras pessoas, no trabalho, nas relações, ao espelho.

Parecia que só conseguia conhecer pessoas más, pessoas que se aproveitavam de mim, fossem amigos, família ou colegas.

Dava-me bem com as pessoas no início, mas depois aquelas que ficavam mais minhas amigas começavam a pedir-me favores, fosse emprestar pagar o café, fosse ir ali ao carro delas buscar qualquer coisa, depois, não sei explicar, piorava. Dava por mim a ter estas pessoas a opinar sobre o meu trabalho, a fazer-me sentir burro, incompetente, sem iniciativa, cobardolas. Aquilo fazia-me muita impressão, mas não conseguia sair daquilo, ficava sempre submisso a estas pessoas. Hoje sei dizer que havia pessoas boas à minha volta, mas só conseguia aproximar-me destas assim.

Como é que a terapia ajudou?

Nos primeiros tempos acho que foi só por não me sentir tão sozinho, tão aflito com as coisas que me faziam no trabalho. Sentia que finalmente tinha um aliado, alguém do meu lado. Mais tarde percebi que também tentava que ele me maltratasse, atrasava-me nos horários das consultas, atrasava-me nos pagamentos, fazia perguntas desadequadas. Acho que fiz tudo para me “entalar”. Felizmente o meu terapeuta apanhou isto tudo e chutou para canto, não fez caso.

Isso explica porque é que eu tentei desistir ao fim de pouco tempo. Por estranho que pareça, eu não conseguia manter-me perto de pessoas que não me maltratassem. Quando, numa sessão, foi-me dado espelho do meu comportamento, caiu-me tudo aos pés, foi a primeira vez que percebi: era eu que estava na origem daquelas relações horríveis que tinha.

Muita, muita água correu debaixo da ponte depois de perceber isso, andei anos às voltas comigo e com a terapia, mas agora consigo pintar um quadro mais claro da minha vida naquele tempo.

Eu tinha muitas dúvidas sobre a minha sexualidade, às vezes tinha namoros com mulheres, às vezes com homens, mas acabavam sempre mal, sempre nesta coisa de eu ser uma vítima nas mãos deles e delas, sentia-me sempre miserável, nem conseguia pensar muito na questão se preferia homens ou mulheres porque todos me maltratavam…

Onde é que isto começa?

O meu pai era um bêbado. Andei muitos anos a disfarçar, a fingir que não era bem assim, que foi só um mau dia, má semana, mau mês… até aceitar, ele era alcoólico. A minha mãe apanhava, sei que ela fingia que não, mas há limites para o que se pode disfarçar, há limites para as mentiras que um filho está disposto a aceitar.

Ela era uma sombra na nossa casa, carinhosa na ausência do meu pai, mas incapaz de lhe fazer frente e sempre a levar-me a não o enervar, como se fosse essa a ordem natural das coisas. Fui-me escondendo dentro de mim, retraindo-me, evitando ser notado em casa.

Quando cheguei à adolescência andei muito confuso. Todos os rapazes falavam de “gajas”, mamas e tudo aquilo que pensavam saber sobre sexo com mulheres. Eu fui atrás, repetia as frases, tinha as mesmas reacções, mas na verdade aquilo não me dizia muito e desconfiava dos meus amigos que se diziam conquistadores nos lençóis.

Eu sentia algumas daquelas coisas quando, a ver TV, os actores tiravam a t-shirt, nas cenas românticas queria ver os homens, nos balneários queria ver os meus colegas, mas sabia que não podia dar nas vistas para não gozarem comigo, para não ser ainda mais o centro dos ataques deles.

Eu tinha um colega em particular, alto, forte, muito giro, que volta e meia também me mandava uns olhares. Um dia fomos os últimos a ficar no balneário, ele meteu-se comigo, eu estava curioso, mas não sabia se queria aquilo ou não. Mas aconteceu, “à bruta”. Convenci-me que era suposto ser assim, que ao fim ao cabo eu até queria. Hoje sei dizer que foi uma violação.

Dentro de mim já havia uma forma de estar, fruto da casa dos meus pais, que dava autoridade às pessoas mais agressivas à minha volta, não sabia ouvir a minha própria vontade. Quis ter uma experiência íntima com alguém, mas não queria aquilo. Se não fosse o que aconteceu naquele dia, eu não teria tido tantas dúvidas sobre a minha sexualidade, não teria tentado tantas vezes ser normativo, gostar de mulheres, tudo isso.

Na terapia fiz as minhas pazes com isso, até fui encontrar esse rapaz, estes anos todos depois, falei com ele, contei-lhe o meu lado da história. Ele ficou arrasado, nunca tinha imaginado que eu me tinha sentido assim, pediu muitas desculpas, que não tinha sido intenção dele. Deu-me alguma paz de espírito. O que aconteceu, aconteceu, reflecti muito sobre o meu papel, sobre como evitar pessoas assim.

Comecei a abrir os horizontes do meu pensamento, a perceber o que é que eu fazia para me aproximar, no trabalho e na vida pessoal, de pessoas com aquele perfil, comecei a experimentar ser eu próprio, a não alimentar relacionamentos tóxicos, sadomasoquistas, foi muito difícil quebrar o ciclo, mas fui fazendo progressos.

Aceitei que não me sinto atraído por mulheres, por muito que tentasse, isso deu-me paz. Tentei falar algumas vezes com o meu pai, percebi que ele nunca me ia ouvir e por isso mandei-o para um certo sítio e nunca mais lhe falei. Ainda falo com a minha mãe, mas não dou espaço para aquela conversa de vítima. Lamento que ela tenha feito as escolhas que fez, mas são dela, não são minhas, se ela precisa que os outros tenham pena dela, que sejam outros e não eu. Pode parecer frio, mas às vezes a única coisa saudável a fazer é ganhar distância.

Continuo a tremer quando tenho que fazer apresentações lá no emprego, mas faço-os porque é uma maneira de partilhar as minhas ideias. Quando me faltam ao respeito, respondo na mesma moeda e continuo. Fui promovido, tenho mais amigos.

Conheci um rapaz novo, diferente das pessoas que já conheci.

Sinto-me como se tivesse tido que partir todos os ossos do corpo, para voltar a pô-los no sítio, desta vez no sítio certo, mais fortes. Sinto-me mais capaz de viver.

Juntei-me a um grupo de suporte LGBT+, para prevenção de suicídio, sei que estou a fazer a diferença.

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

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