Uma história sobre o peso de mil pequenos gestos

 

Sempre imaginei a velhice como uma coisa que viria um dia depois, mais tarde, não hoje. Nunca imaginei que chegasse tão cedo, que me sentisse sozinha tão nova.

54 anos de idade não me parece uma boa idade para se ser velha, mas foi isso mesmo que eu senti. Sou mãe de 3 rapazes, o mais novo saiu agora de casa com 24 anos, o mais velho, 34, já tem duas filhas, adoro as minhas netas. Já não tenho nenhum deles cá em casa.

Eu e o meu marido damo-nos bem, ainda falta muito para a reforma. Mas não ter nenhum dos meus filhos ou netos cá em casa é uma coisa que me custa muito.

Quando o mais novo saiu, andei sem saber o que fazer. A casa parecia gigante, vazia, morta. Nós os dois não enchíamos os espaços todos. O que é que podia fazer agora? Esperar para morrer? Já, tão cedo?

O meu mais velho disse-me muitas vezes que eu não me podia meter demais na vida dele e das filhas, que me proibia. Aquilo custava-me muito ouvir, mas tá no direito dele, são as filhas dele, mesmo que eu não perceba.

Comecei a dar por mim, depois do jantar, sentada às escuras na sala, sem olhar para lado nenhum, até o meu marido ir encontrar-me, sem saber o que me dizer.

Comecei a fazer isso sempre que não tinha tarefas, ficava sentada, imóvel, a olhar para todos os meus dias de ontem. Não sei dizer o que é que estava a sentir, acho que nada, mas não podia ser nada.

O meu marido, as minhas colegas e os meus filhos começaram a andar preocupados comigo, mandaram-me para um psiquiatra que disse que eu devia tomar antidepressivos. Não tomei, não me sentia triste. Tinha mais que fazer do que andar a tomar remédios se não estava doente.

Chatearam-me tanto a cabeça…, mas sou teimosa e não tomei. Umas das minhas noras arranjou o contacta de uma psicóloga que ajudou a mãe dela. Disseram-me que eu tinha de ir, eu disse que não ia, já por teimosia. Mas passadas umas semanas achei que seria bom ter um pouco de companhia e marquei uma consulta.

Não gostei muito da primeira vez, ela não dizia muito, parecia que era só eu que estava a fazer conversa. Ela perguntou-me se era isso que eu queria, se queria “fazer conversa” ou se gostava de poder dizer as coisas que me pesavam no coração.

Não respondi, mas acho que deixei cair uma lágrima, levantei-me e fui-me embora.

Depois voltei e continuei a voltar. Fiz uma coisa que nunca fiz, falei sobre mim, sobre o que estava mesmo a sentir, sobre o que tinha mesmo sentido na minha vida.

Parecia que estava a tirar anos de vida de cima…

Eu sabia que o meu filho mais velho não queria que me metesse na vida da família dele, das filhas dele, mas tinha desistido de perguntar porquê. Falei disso na terapia, durante muitas e muitas horas…. Respondi a inúmeras perguntas sobre o assunto. Comecei a perceber uma coisa que estava à vista de todos, menos de mim. De cada vez que eu comprei fraldas para lhes levar, comprava a marca que me parecia melhor, depois eles diziam-me que aquela marca dava alergia às miúdas. Da próxima vez que eu ia comprar, esquecia-me e comprava a mesma marca outra vez. Acho que fiz isto dezenas de vezes sem me aperceber. Às tantas o meu filho já só encolhia os ombros quando eu lhe levava outra embalagem. Não sei porque é que fazia isto.

Depois percebi que queria tanto ajudar a minha nora com as miúdas que me tornei chata. Insistia que ela devia fazer como eu fiz, dar as mesmas comidas, fazer a mesma rotina. Eu achava que estava a ajudar, não percebia porque é que ela se irritava tanto comigo. Agora vejo que eu não ouvia o que ela tinha para dizer, eu não ouvia que ela não queria as miúdas a comer certas marcas com excesso de açúcar, queria dar certas comidas só em certas idades e eu, a ser teimosa sem saber que era, contrariava em tudo o que ela dizia. Eu já tinha sido mãe há tanto tampo, era assim que se fazia. Agora percebo que, por eles, até se podia abrir excepções aqui e ali, mas eu queria fazer diferente em toda a ajuda que eu dava. Até que começaram a dizer-me para não ir lá ajudar, para não fazer, para não comprar as coisas, que não era preciso, etc.

Pensei muito tempo nisto, com ajuda, não é fácil, sentir-me rejeitada assim. Mas porque é que eu insistia em ser tão do contra? Porque é que queria as coisas à minha maneira? Sou avó, não sou mãe delas.

Acabei por isso percebendo que quando fui mãe, as coisas foram muito difíceis, não tive tempo de aproveitar cada um dos meus bebés com calma, havia sempre tanto para fazer, ninguém me ajudava, o meu marido trabalhava imenso, não havia cá dinheiro para amas ou empregadas, não havia internet para eu ir ver se as coisas faziam bem ou mal aos filhos. Comiam o que havia e pronto, eu tinha que me desenrascar sozinha, tive que aguentar aquilo tudo com um sorriso na cara para as vizinhas não dizerem que eu era preguiçosa.

Sem saber, eu pensava que com as netas eu ia ter tudo o que não tive com os meus filhos, mas não é assim. Elas têm a mãe delas, hoje sabem-se outras coisas que não se sabiam no meu tempo, há mais ajudas, há menos falta.

Para ser mãe, tive que deixar de ser outras coisas, senão não tinha dado. Mas nunca me prepararei para o dia em que não iam mais precisar de mim, em que a minha presença passasse a ser um peso na vida deles.

Foram aprendizagem dolorosas que fiz, naquelas conversas, mas aos poucos as coisas foram-me fazendo mais sentido. Fui visitar as minhas netas algumas vezes, tive atenção para não exagerar. Tem corrido bem, agora visito-as imenso, se me pedem para ajudar com alguma coisa, eu faço questão de escrever num papel que guardo para mim, para não me deixar enganar por mim mesma e ir ser do contra. Ouvir mais e opinar menos é um preço pequeno a pagar para estar mais tempo com a família. Na minha casa voltei a ler. Há anos que não lia.  Vou sair mais. Até vamos jantar fora algumas vezes, já nem pensava voltar a fazer isso.

Os meus outros filhos ligam-me mais, vêm visitar mais vezes. Sinto-me tranquila com isso.

Assim que os deixei ir, passaram a estar mais presentes. Aprendi a não tentar segurar com tanta força, aprendi a confiar mais neles, afinal já não são crianças.

Já não me sinto velha, sinto-me bem.

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

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