Uma história sobre medo, ansiedade e esperança
Nunca gostei muito dos rótulos. O que me serve saber que tenho “personalidade borderline” ou “tendência para descompensações agudas” ou “personalidade depressiva”? É para estar na moda? Ter tema de conversa em festas?
Isto para dizer que já passei por muitas avaliações, de cada vez que me davam um novo rótulo diziam-mo como se isso por si só fosse mudar alguma coisa. Quando era mais nova acreditava que era importante saber, hoje acho inconsequente, aliás acho que só me dificultou a vida. Numa altura comecei a pensar “então e se eu quiser mudar?”, será que posso ter outro diagnóstico? Tive medo que não me deixassem mudar porque já tinha diagnóstico. Enfim, tinha sido mais fácil se me ajudassem a perceber o que estava a sentir em vez de dar nomes à minha personalidade. O que é que me incomodava? Ah, não sei, tanta coisa. Às vezes era porque aconteciam coisas importantes, como quando o meu tio faleceu, noutras alturas era só porque o dia-a-dia enlouquecia-me. Aos 16 anos tive que parar de ir à escola por 6 meses, chumbei, claro, mas não conseguia perceber porque é que ia para lá, nada fazia sentido. Tirava boas notas se quisesse, mas não percebia se queria ou não ter boas notas, as conversas dos meus colegas não tinham nada a ver comigo…
É confuso tentar encontrar um bom momento para contar a minha história. Por isso vou começar aos meus 19 anos. Tinha conseguido terminar o secundário estudando à noite (os colegas da noite só estavam lá para estudar, tinham pouca conversa, o que era bom para mim), mas fora isso a minha vida era estranha, ou melhor, para mim era.
Havia alturas em que me afundava em depressões horríveis, que depois passavam, noutras alturas conseguia fazer desporto e depois logo a seguir perdia interesse, ficava muito ansiosa e desistia. Ficava algum tempo sem conseguir sair de casa a não ser por obrigação. Consegui ter um ou outro namorado, mas não durava muito, dava-me a sensação de não haver uma ligação verdadeira. Hoje sei que estava sempre ansiosa e que isso me bloqueava as emoções, mas ainda assim acho que não eram boas relações.
Andei numa terapeuta, senti que em vez de me ajudar tentava treinar-me. Tava sempre a perguntar-me: “de 0 a 10, quanta ansiedade estavas a sentir?” ou então tentava ensinar-me porque é que estava ansiosa e como respirar fundo 10 vezes ia ajudar-me a fazer coisas. Eram truques engraçados, mas comecei a ficar na expectativa de receber um biscoito no final das sessões (estou a ser irónica, claro, nunca houve biscoitos, eu é que sentia aquilo como treino para cães).
Passei para outro lugar, para um grupo terapêutico. Aí consegui orientar-me um pouco melhor, a ouvir as histórias dos outros. Percebi que sentir-me tão diferente das outras pessoas não era bom nem mau, era apenas eu. Talvez um dia me sentisse menos diferente, mas não havia pressa. Também percebi uma coisa que me fascinou: para muitas das pessoas que sofriam de ansiedade parecia que bastava uma coisa correr muito mal para ficarem sempre com medo que voltasse a acontecer. Comigo era o oposto, porque eu pensava que se uma coisa corresse bem então algures alguma outra coisa também podia correr bem.
Foi aí que criei esta imagem para a minha vida: via a minha vida como o céu à noite, todo escuro, mas com estrelas, poucas no início e depois cada vez mais. O que me dava vontade de continuar era pensar que apesar de agora estar tudo escuro, eu estava a caminhar para outra estrela, para outro bom momento. Eu também tinha esta ideia que desistir não era opção, imaginava que se saísse desta vida antes do meu tempo, então iria recomeçar, mas num nível de dificuldade pior. Não sei se é assim ou não, mas essa ideia, de não ter a possibilidade de desistir manteve-me focada nas minhas estrelas no céu.
No grupo terapêutico consegui perceber que havia muitas coisas da minha família que me enlouqueciam, a minha mãe não era consistente em nada, gritava comigo para estudar e quando estava a estudar, gritava comigo para ir tratar da loiça. Chorava porque não tínhamos tempo de qualidade e quando íamos as duas sair só falava de como eu tinha que estudar mais e aplicar-me mais, até que nos chateávamos. O meu pai era viciado no trabalho, mal o via e quando o via ele só queria descansar. Percebi, com a ajuda do grupo, que precisava de criar uma vida por mim, descobrir-me como pessoa individual, sem a parte familiar a toldar-me a visão. Percebi também que não ia conseguir no grupo.
Comecei a ser acompanhado por um psicólogo que me recomendaram. Foi interessante, não era daqueles que perguntavam coisas de 0 a 10. Deixava-me falar sobre o que quisesse, ajudava-me a fazer ligações entre os temas. Parecia que não esperava nada de mim, estava apenas disponível. Nunca tinha imaginado que iria ao psicólogo numa altura em que me sentisse bem, pensava que só se podia ir se houvesse uma crise. Foi a melhor coisa que fiz.
Comecei a perceber quem eu era por mim, sozinha, sem tentar encaixar-me nas expectativas dos outros. Fui viajar, continuava a falar com o psicólogo online, acho que me fez bem, não me perdi de mim.
Encontrei a arte, a pintura, comecei a despejar tudo de mim nas pinturas. No início eram tenebrosas, tinha muito negro dentro de mim, mas com o passar do tempo, à medida que mudei, também as minhas criações mudaram, comecei a ser seguida por imensas pessoas que elogiavam o meu trabalho, comecei uma carreira.
Quem sou hoje? Hoje, aos 29, sou eu mesma! Tenho momentos de grande paz, tenho momentos menos bons e tenho momentos criativos, que me absorvem e depois libertam-me novamente. Nisto tudo sinto que gosto da minha vida, sinto que já não fujo de nada, faço e sinto por mim e se for pelos outros é uma escolha, não um dever. O processo que passei não foi um tratamento, foi algo mais, foi uma descoberta.
Hoje o meu céu brilha de tantas estrelas que tem!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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