Uma história sobre a ilusão da fraqueza

 

A vergonha é uma coisa estranha, existe, existia aliás, por si mesma. Tinha vergonha de ter vergonha e isso fazia-me sentir mais vergonha ainda. O mais curioso é que eu estava tão fechado dentro deste ciclo que nem me apercebia.

O que é que é um homem? O que é que o define? É alguém capaz, competente, forte, alguém que satisfaz sexualmente uma mulher. Ponto. Um homem que não seja estas coisas não é um homem.

Estas eram as noções muito “claras” que eu tinha sobre a minha vida. Tinha eu 22 anos.

É fácil um rapaz, ou um homem, dizer-se forte se nunca passou pela fraqueza ou confiante quando nunca soube o que era a verdadeira insegurança.

Até essa idade correu tudo mais menos bem para mim, tirando as normais chatices da vida. Mas houve um dia em que estava com a minha namorada da altura, eu estava cansado, tinha vindo de um jogo de futebol e quando cheguei a casa soube que a gata tinha morrido. Ela tinha 17 anos e já se esperava. Armei-me em duro e disse a mim mesmo que não era nada, fui sair com a minha namorada. Foi uma noite normal e, no final da noite, enrolámo-nos. Eu tinha a certeza que estava mais do que à altura do momento, mas a verdade é que não estava. Além do cansaço eu estava muito abalado pela morte da gata, mas queria-me convencer que essas coisas não me podiam afectar. O que é que aconteceu? O pior pesadelo para um jovem determinado em mostrar-se viril: não consegui. Fiquei irritado, fiquei zangado, discutimos por causa de qualquer outra coisa e fomos cada um para sua casa. Dormi e acordei irritado, convenci-me que não tinha sido nada, não pensei mais nisso.

Da próxima vez, feitas as pazes, ela diz-me a brincar “vê lá se isso desta vez não falha!”. Pronto, estragou tudo outra vez, senti-me ofendido, achei que ela não tinha nada que dizer essas coisas, discutimos e não aconteceu nada. Na vez seguinte ela não disse nada, estava bastante inibida até, e o resultado foi que não quisemos avançar. Pouco tempo depois terminámos.

Aquilo ficou-me atravessado para o resto da vida, aquela primeira vez em que falhei. Fiquei a remoer e a remoer… então e se ela contasse a alguém? Então e se me voltasse a acontecer? O que é que isto fazia de mim? Será que já não gostava de mulheres? Mil dúvidas a encher-me a cabeça vezes e vezes sem conta.

Sozinho eu não tinha problemas. Os problemas começavam no momento em que alguma mulher começasse a mostrar interesse por mim, aí eu lembrava-me do que tinha acontecido e começava a sentir-me mal, envergonhado, a querer ir-me embora… evitava deixar-me envolver.

Andei assim uns anos até que conheci aquela que viria a ser a minha mulher. Eu tinha muito receio de me envolver com ela, tinha medo que corresse mal. Ela dizia que eu era tímido. Houve uma noite, numa festa, ela “encheu-me” de bebidas e conseguiu levar-me a relaxar, fomos para casa dela e, milagre santo, correu tudo bem, a maldição parecia quebrada. Mas não estava.

Daí para a frente só conseguíamos ter relações quando eu estava particularmente descontraído, ou tinha bebido, ou ela me apanhava desprevenido. Ela dizia-me a brincar que, por ela, tudo bem, tava farta de homens chatos sempre a querer o mesmo a toda a hora… isso não me ajudou…

Sabe-se lá como, tivemos dois filhos. Ter filhos é uma dádiva, mas também é aquela altura em que os casais podem discutir muito e chatear-se por mil coisas. Ela chegou a acusar-me de ser um fraco, inútil, numa dessas discussões… isso ficou comigo… doeu muito.

A fase das discussões passou, mas eu continuei afectado. Já não tinha problemas só com isto, já tinha dificuldades em concentrar-me no trabalho, sentia-me desorientado a tomar conta dos miúdos, irritava-me com facilidade.

A minha mulher obrigou-me a procurar ajuda porque “queria de volta” o marido dela e porque precisava de mais ajuda em casa e assim não tava a dar.

Fui ao psicólogo. Preferi que fosse um homem para poder falar destas coisas.

Eu tinha a certeza que era tudo por causa daquela primeira vez…, mas depois de conversarmos, depois de me ouvir falar vezes e vezes sem conta, percebi que era uma coisa diferente.

Eu cresci a não ver o meu pai, aliás ele estava lá, em casa, participava, mas a minha mãe é que mandava em tudo, sempre. Era uma força da natureza e ele fazia a parte dele sem se queixar. Eu gosto dele, sempre nos demos bem, mas não havia dúvida que era a palavra da minha mãe que era lei.

Ouvi tantas vezes a minha mãe a chamá-lo idiota, inútil, preguiçoso. Nem era com raiva, era quase rotina porque ela queria tudo à maneira dela e ele não ligava muito às exigências dela.

Criei um objectivo bem lá no fundo da minha cabeça: eu ia ser um homem forte, com presença, destemido, eu não ia ser um fraco assim como o meu pai. Rejeitava aquela maneira de ser dele, sem me aperceber atacava-o como a minha mãe atacava. Não vi, mas dentro de mim cresceu um medo gigante de falhar, de ficar igual a ele. Não foi porque aquela noite correu mal, foi porque eu já estava à espera de um momento assim para me deixar desmoronar. Podia ter sido qualquer coisa, calhou ser assim.

Quando percebi isto, a minha cabeça “explodiu”, tanta coisa de repente fazia mais sentido. Andei semanas a encaixar e a perceber coisas que me tinham acontecido.

Fiquei logo bom? Haha! Claro que não.

Eu só sabia estar assim, hesitante e inseguro. Não me bastou querer desfazer a parte de mim de que não gostava. Tive que me redescobrir e reconstruir aos poucos.

Demorou bastante tempo, mas consegui, sinto-me mais eu hoje em dia do que alguma vez me tinha sentido. Sinto-me mais jovem agora do que na adolescência.

Percebi que ia ser para os meus filhos aquilo que o meu pai foi para mim, agora já consigo escolher, já me vejo, já penso porque percebo onde começa o novelo de emoções que tinha na cabeça.

Posso fazer asneira, mas se fizer a asneira é minha e isso liberta-me.

 

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

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