Uma história sobre as consequências de ter um pai ciumento
Quando eu era miúdo, os meus amigos achavam que eu ficava insuportável quando namorava. Era um “cortes”, ficava um chato, com a mania que sabia tudo. Nada disso me fazia sentido, achava normal que passasse mais tempo com a minha namorada. Achava que estavam com inveja.
Nos meus vintes tive duas namoradas de quem gostei mais, namorei um par de anos com cada. Isolei-me um bocado dos amigos de cada vez. Depois uma delas traiu-me e mais tarde a outra também.
Ambas me disseram que fui eu que as empurrei para isso, que os meus ciúmes eram sufocantes, não as deixava respirar. Eu chutei para canto, achei que era só conversa para se justificarem.
Com 30 e poucos anos conheci uma miúda que eu achei que seria “a tal”, mas durou poucos meses e ela acabou comigo. Disse-me que nada justificava os meus comportamentos, os meus ciúmes, a minha obsessão. Ela disse-me aquilo com toda a calma do mundo, várias vezes, em pessoa e por escrito. Tentei convencer-me que ela tava a inventar para se justificar. Mas a pulga ficou a passear atrás da orelha, fazendo cada vez mais barulho.
Decidi entrar em contacto com as minhas ex-namoradas e pedi-lhes que me escrevessem tudo o que correu mal nas relações. Tive que insistir e prometer vezes sem conta que não iria contra-argumentar, que iria apenas aceitar a informação para tentar aprender. Ambas aceitaram. Ambas me disseram que eu precisava de ajuda e que se aquilo me ia pôr no caminho de procurar ajuda, então valia a pena.
Quando recebi os textos fiz das tripas coração para não lhes responder torto e agradeci apenas, consegui ser fiel às minhas promessas.
Falei com amigos meus, confirmaram-me tudo o que elas disseram. O pior era que eu não conseguia ver o que toda a gente parecia estar a ver.
Todos concordavam que eu era um tipo fixe, porreiro, amigo dos meus amigos, mas que assim que entrava uma mulher na minha vida, eu virava besta. Ficava a controlar o tempo todo, tinha montes de ciúmes, queria saber tudo o que elas estavam a fazer, quando, como, com quem…tudo o que não se deve fazer. Mas eu achava que fazia só o “normal”. Hoje sei que muito ou pouco, doente é doente!
Com estas informações comecei a estar atento:
Quando saía à noite e via alguma mulher que me interessasse, dava por mim a prestar mais atenção aos homens à volta dela, a querer controlar quem é que se aproximava. Percebi que isso não era novo em mim, mas nunca tinha percebido. Nas redes sociais o meu foco ficava igualmente na “competição”. Tentei mudar-me e comecei a ter picos de ansiedade que não conseguia controlar, comecei a sentir a minha vida a sair dos eixos, comecei a sentir-me perdido e… assustado.
Acabei por procurar ajuda.
Comecei a ter consultas de psicologia clínica. Os primeiros tempos das consultas foram estranhos: foi um alívio, foi uma irritação, fez sentido, deixou-me furioso, enfim, um turbilhão.
Lá pelo meio das conversas comecei a perceber que algumas coisas que eu dava como certas, não eram certas, coisa nenhuma. Foi a minha experiência e moldou-me, mas o “certo” e o “errado” que eu tinha comigo era aleatório, fruto das aprendizagens com os meus pais.
O meu pai era o meu herói, não podia ser de outra forma, toda a família girava em torno dele. Hoje reconheço o narcisismo que na altura eu embelezava. Os meus pais divorciaram-se quando eu tinha 13 anos e a minha mãe saiu, foi-se embora. Eu quis ficar com o meu pai. Fui vendo a minha mãe, mas fomo-nos afastando. Intoxiquei-me com as críticas que o meu pai lhe fazia. Que ela o tinha traído, que ela era isto, que ela era aquilo… enfim. Criei um molde de relacionamento para homens e mulheres com base no rancor de um homem que não soube amar e deixar-se ser amado. Herdei dele o medo da solidão apesar de nunca ter sentido grande solidão. Desliguei-me da compaixão da minha mãe, confundi-a com fraqueza.
Ora isto dito assim é tudo muito bonito, mas desmontei-me todo quando percebi estas coisas. Depois comecei a reconstruir-me, voltei a reatar ligações com a minha mãe, e com o meu padrasto, felizmente fui a tempo. Afastei-me das certezas rancorosas do meu pai que continua sozinho, escolha sua.
Hoje continuo a descobrir-me, tenho mais amigos e amigas. Gosto mais das pessoas. Tenho uma namorada e gosto imenso de dormir em paz mesmo nas noites em que ela sai. Dou mais valor à escolha que ela faz agora de continuar comigo, do que ao medo de que ela possa um dia não me escolher. Vivo agora, com o que é real, não com fantasias herdadas.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.