Uma história sobre amar e odiar a vida

 

Aos 32 anos de idade já contava com 4 tentativas de suicídio.

Se eu não gostava da vida? Antes pelo contrário, eu amava demais a vida, amava com uma intensidade tão forte que volta e meia queimava-me e não aguentava mais.

Não faz muito sentido, pois não? A mim também não fazia.

Havia uma coisa que eu fazia, eu queria imenso ter experiências intensas, sentir adrenalina, ir às festas mais loucas, etc., mas muitas vezes os meus amigos não alinhavam, eu ficava frustrada, fazia-lhes a cabeça até alguém alinhar. Depois ia e eu exagerava sempre. Se íamos ficar até às 5 da manhã, então eu queria esticar até às 09:00, se eu conhecesse algum rapaz interessante, queria conhecer mais, se havia alguma coisa para consumir, eu consumia demais. Parecia que eu só conseguia ficar satisfeita depois de esgotar todas as possibilidades. Os amigos que alinhassem comigo costumavam arrepender-se porque alguém acabava a ter de tomar conta de mim. Eu não queria, dizia que não tinham nada que fazer isso, mas na verdade se não fosse essa companhia eu provavelmente nem ia à festa.

Depois ficavam chateados comigo, eu dizia que era porque eram fracos, cortes, sem espírito de aventura. Acreditava nas minhas palavras. Queria sempre mais, havia qualquer coisa ao virar da esquina, qualquer coisa incrível que eu ia descobrir, bastava tentar um pouco mais, ir um pouco mais além.

Quando tinha namorado também queimava as relações, queria tirar o máximo de proveito possível. Tinha experiências ousadas e provocantes com eles em sítios perigosos, exigia-lhes total dedicação, ficava furiosa se pusessem o trabalho à minha frente, consumia-me de ciúmes, dava com eles em doidos basicamente. Quando me largavam eu ficava furiosa, não lhes perdoava, mas depois arranjava forma de voltarem a mim e depois ignorava-os, tratava-os abaixo de lixo.

No meio destas coisas que eu fazia, os meus amigos e a minhas amigas gostavam muito de mim e eu delas, já os namorados… eu desfazia-os em bocados sem saber o que estava a fazer.

Quando as festas acabavam, quando desistia de algum rapaz, quando voltava de alguma viagem muito boa, eu sentia-me cansada, acabada, vazia. Completamente vazia, sentia que nada desta vida fazia sentido, nada valia a pena, nada cumpria qualquer propósito.

Aí era o inferno, afundava-me completamente, não fazia ideia como sair desse buraco, entrava em desespero. Nas boas alturas, era só uns dias, nas más durava umas semanas. Nas mesmo más…, mas mesmo más… eu acabava nas urgências do hospital. Comprimidos numa das vezes, pulsos na outra vez, enfim, formas de lá chegar não faltam.

Depois punham-me com medicação psiquiátrica. Eu odiava aquilo, não me sentia eu, ficava tudo igual, tudo uma seca, os sintomas eram péssimos. Diziam-me que tinha de me adaptar e ajustar a medicação. Eu não conseguia. Eu não me explicava, não dizia o que estava a sentir, ficava tão contrariada que não colaborava. Ao fim de um tempo desistia, andava ok uns tempos e depois recomeçava.

Quando fiz 30 anos foi o pior, estava oficialmente terminada a minha década dos 20. Meti na cabeça que aquele era o último ano, o ano do vale tudo, sem rédeas. E foi, se foi… tenho tantas histórias desse ano que até tenho vergonha. O ano acabou comigo no hospital, claro. Desta vez foi mesmo grave, convenceram-me a ficar lá internada um tempo grande.

Quando saí senti, pela primeira vez, que talvez gostasse de continuar a viver, mas na verdade não sabia como fazê-lo.

Já tinha falado com muitos psiquiatras e psicólogos em hospitais, mas nunca tinha procurado ajuda a longo prazo. Recomendaram-me uma psicóloga, comecei a fazer terapia. Quando chegou a altura de eu querer desistir da medicação, ela ajudou-me a perceber o que estava a fazer e desta vez consegui mudar a estratégia, em vez de desistir mudei de psiquiatra e, com a ajuda das sessões de terapia, consegui ir explicando melhor os meus sintomas, a medicação foi sendo ajustada às minhas necessidades, à minha tolerância. Foi horrível, sim claro que foi, eu não gostava nada dos períodos de adaptação, mas com a ajuda fui-me sempre lembrando que eu queria melhorar, que já tinha tentado das outras formas e persisti, consegui seguir em frente.

Quando, ao final de muito, mas muito tempo, comecei a estabilizar, a terapia começou a ficar diferente, consegui começar a falar de coisas mais profundas. Lembro-me de coisas que a minha mãe fez quando eu tinha 4 anos, coisas que o meu pai me disse aos 7. Eu pensava que estava tudo esquecido.

Tenho muitos traumas, sei que sim, se calhar reagi mal à vida. Mas estou finalmente no caminho de volta à vida, para longe da destruição. Descobri muito sobre mim na terapia, mas a maior mudança da minha vida foi quando decidi procurar ajuda pelo meu próprio pé, ninguém me podia ajudar antes disso.

 

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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Michael Dickinson

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