Uma história sobre crescer na sombra do alcoolismo
Falar de mim? Pode ser. Sou a Maria, tenho 27 anos e desde que fiz terapia perdi 8 Kg! Haha, estou a brincar. Não procurei terapia para controlar o peso. Eu procurei ajuda porque tinha medo, muito medo.
Eu tinha medo de qualquer coisa que não percebia. Tinha pesadelos e acordava em pânico a pensar que tinha de fugir, mas depois percebia que não sabia do que é que tinha de fugir.
Enquanto eram só pesadelos tudo bem, mas o que é que eu podia fazer quando andava com medo ao longo do dia? Ia trabalhar com medo de ser despedida, com medo de não ser despedida e ter que voltar a passar por aquilo no dia a seguir. Tinha medo de ser assaltada quando ia na rua. Tinha medo de namorar porque podia não ser o rapaz certo. Eu não percebia porque é que estava assim. Sabia que tinha tido umas experiências chatas, mas já tinha ultrapassado isso tudo, era o que eu achava pelo menos.
As minhas experiências “chatas”: até aos 10/11 anos acho que não tenho assim nada a apontar. Acho que tive uma boa infância, a minha irmã é 6 anos mais velha que eu, mas eu dava-me muito bem com ela, a minha mãe estava muito presente, o meu pai, médico cirurgião, trabalhava muito, mas quando estava em casa era muito bem-vindo.
A primeira vez, que me lembro, de ver o meu pai estranho foi quando eu tinha 11 anos. Acordei de manhã quando o ouvi a chegar a casa, do turno no hospital, eram 6:45. Fui encontrá-lo na poltrona da sala, tava sentado às escuras com um copo de whiskey na mão. Perguntei-lhe o que é que ele tinha e ele respondeu-me “Perdi mais um…”. Normalmente eu teria ido dar-lhe um abraço, mas houve qualquer coisa tão fria, tão distante no tom de voz dele que… tive medo. Até hoje não consigo bem explicar o que é que se passou naquele instante, mas nos meus piores momentos aquela voz assombra-me.
A mudança nele foi assim uma coisa lenta, ninguém deu por isso, mas ele passou a ser diferente.
No início era o tal copo de whiskey depois dos turnos difíceis, noutras alturas era divertido, como quando havia jantares lá em casa com os amigos dos meus pais, nós bebíamos sumo e brindávamos também, havia muito riso, os adultos diziam piadas parvas. Bem depois de nos deitarmos ainda se ouvia o burburinho a vir da sala.
Esses jantares continuaram a acontecer, mas o meu pai parecia ser quem mais falava, os outros adultos não participavam tanto. Começou a haver menos pessoas nos jantares. Ele passava da mesa para o sofá, sempre com um copo na mão. Não ajudava a arrumar a sala ou a cozinha.
Depois os jantares pararam, mas a rotina dele ao domingo, quando não estava de turno, era abrir uma garrafa de vinho ao almoço e ir bebendo até ao jantar, depois deixou de ser só uma garrafa. A minha mãe chamava-lhe a atenção, mas ele ripostava que tinha o direito de descontrair depois da semana que teve (sempre difícil, com muita responsabilidade). Foi assim, aos poucos.
Uma noite, quando tinha 12 anos, acordei assustada com os gritos da minha irmã a expulsar o meu pai do quarto dela e com ele a gritar-lhe de volta a dizer que ela já era crescida. Não percebi nada daquilo. Sei que fomos viver com a minha tia umas semanas, depois voltámos, o meu pai parecia mais calmo, mas durou pouco.
A minha irmã saiu de casa para ir estudar para longe. Eu fiquei, fui ficando cada vez mais insegura em casa com os comportamentos do meu pai. A minha mãe começou a ter um olho negro de vez em quando, dizia-me “ah, caí, não te preocupes, a mãe anda desastrada.”
Quando comecei a sair à noite a minha mãe começou a insistir para que eu fosse passar o fim-de-semana fora, com a minha tia, com a minha irmã, com uma amiga. Mais tarde percebi a ligação.
Fui para a faculdade, enfermagem. Eu tinha notas excelentes, conhecia bem o mundo da medicina, mas no segundo ano, durante um dos estágios tive um ataque de ansiedade e não consegui voltar a concentrar-me. Acabei por desistir.
Fui trabalhar para fora 6 meses para pensar noutra coisa e organizar as ideias.
Depois um amigo meu abriu cá um restaurante e convidou-me para vir trabalhar com ele, por isso voltei. O meu pai não era a favor, mas a minha mãe não foi contra.
O trabalho correu bem, o restaurante teve sucesso e o meu amigo começou a falar em abrir mais restaurantes comigo como gerente. Eu aceitei, ao fim de pouco tempo percebi que não ia conseguir porque não estava a conseguir sair de casa por causa dos meus medos. Ficava paralisada à porta de casa, com as mãos a tremer sem conseguir pôr a chave na fechadura e não querer sair. Foi aí que fui para a terapia.
Com a terapia aprendi a enfrentar os medos, consegui ter a coragem de ser “só” uma empregada enquanto fui estudar gestão. Depois tive a coragem de aceitar novamente o convite e passar a gerente dos novos espaços desse meu amigo, tem estado a correr bem desde aí, sinto-me cada vez mais livre, cada vez mais eu e cada vez mais indiferente às críticas do meu pai que acha que eu nunca devia ter deixado enfermagem!
Então e o que é que se passou? Do que é que eu tinha medo?
Por um lado, eu tinha medos por hábito, porque ter um pai alcoólico e imprevisível criava em mim uma grande insegurança quando era adolescente. Não sabia quando é que ele ia estar em casa, não sabia se ia estar a trabalhar, se ia vir zangado ou não do trabalho, não sabia se ele ia estar bem-disposto, se estivesse bem-disposto não sabia se isso ia durar ou se ia mudar de um momento para o outro. Não sabia ao certo o que queriam dizer os silêncios da minha mãe, não sabia se ele era muito mau para ela ou não, não sabia muito bem porque é que ela estava sempre a tentar que eu não estivesse em casa ao fim-de-semana.
Mas o medo número 1, por baixo desses medos pequenos todos, foi pensar que eu ia tornar-me assim, igual a ele. Foram muitos anos a ouvir dizer que ele bebia por causa do trabalho, o trabalho dele era uma coisa muito séria, nobre, respeitável… algures a mensagem ficou gravada no meu inconsciente: assim que eu começasse a trabalhar numa profissão “séria e respeitável” – ligada à saúde – então começaria a ficar igual. Ficaria destrutiva, imprevisível, cheia de rancores e mágoas.
Foi por isso que tive as crises de ansiedade a estudar enfermagem, foi por isso que senti que não conseguia mais, foi por isso que desisti. Na verdade, eu só fui para enfermagem porque os meus pais queriam que fosse.
O mesmo aconteceu quando recebi o convite para ter mais responsabilidade no meu trabalho, senti que ia começar a perder-me.
Na terapia encontrei esse fantasma perdido dentro de mim, consegui fazer-lhe frente, consegui libertar-me do que eu pensava ser o meu fado!
Às vezes ainda sinto aquelas coisas, aquelas ansiedades quando as coisas me correm bem, mas agora sei de onde vêm, consigo sorrir e lembrar-me que eu sou eu e apenas eu!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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