Uma história sobre o peso da obrigação
Eu sou um homem, tenho 32 anos e já cheguei mais longe nesta idade do que a maioria das pessoas aos 60.
Este era o tipo de disparate que eu dizia a mim próprio e aos outros à minha volta para me auto justificar, para validar o meu estilo de vida, os suores frios que me acordavam a meio da noite, a minha incapacidade de manter uma relação por mais de 3 meses (a culpa nunca era minha, outra mentira).
Tinha a minha empresa, tudo passava por mim, tinha um BMW novo a cada 4 anos, telemóvel nunca mais velho que 3 anos e sempre topo de gama, um fato para cada dia da semana, a colecção valia mais do que a muitas pessoas ganham em 2 anos.
Acordava cedo, treinava, seguia uma dieta rigorosa, trabalhava 12 horas ou mais, treinava outra vez ao final do dia. Bebia um copo de vinha no Natal, nos meus anos e um copo de champanhe na passagem de ano. Tudo na minha vida se encaixava na perfeição desde que eu não parasse, nunca podia parar.
Porque é que não podia parar? Workaholic? Para ter sucesso? Para cumprir mais objectivos? Para ganhar à concorrência?
Dizia a mim mesmo que era isso tudo. Até que percebi que não era.
Houve um ano em que me constipei. Tomei vitaminas e segui em frente, nada se podia meter entre mim e a minha rotina, não dei descanso ao corpo. Ficou comigo, essa constipação, não consegui sacudir, piorou aos poucos, aumentei o ritmo, uma coisa levou à outra e fui hospitalizado com pneumonia e claramente fadiga. Fiquei 2 semanas numa cama de hospital, ao terceiro dia tiraram-me os electrónicos porque recusava-me a dormir, recusava-me a parar de trabalhar. Não reagi bem, claro, mas de uma forma ou de outra mantiveram-se firmes e obrigaram-me a dormir, até com sedativos.
Dormi, dormi e dormi. Quando acordei senti o cansaço que andava a ignorar, senti o estado do meu corpo, desta pneumonia e perguntei-me porquê. Porque é que eu estava a fazer aquilo? Qual é que era o meu propósito com aquela intensidade toda? Não tinha resposta. Pela primeira vez desde que tinha começado a trabalhar não sabia responder a uma pergunta.
Recuperei, voltei para casa, para o quotidiano normal. Não voltei a treinar logo. Na empresa não gostei que estivessem todos dependentes de mim. Entrei com a garra habitual, pus as coisas em ordem, mas ao final de cada dia o nó que sentia na garganta crescia mais um pouco.
Voltei aos treinos, mas não consegui empurrar o nó para baixo. Comecei a acordar a meio da noite sem saber porque é que tinha escolhido aquela casa, sem saber o que queria fazer nos próximos dias, meses, anos, para além do trabalho.
Isto foi ficando mais grave, mais pesado, menos suportável. Eu sabia como fazer tudo o que era esperado de mim, mas já não sabia o porquê de o fazer.
6 meses passaram-se nisto até que lá na empresa começaram a dar-me o toque e foi aí que achei que devia procurar ajuda. Fui, comecei a ter consultas de psicologia.
De início arrependi-me, fiquei pior, mais melancólico, mais zangado, menos produtivo, mas não me sentia capaz de voltar para trás, para onde estava. Segui em frente, ao menos a teimosia ainda a tinha.
Foi a maior sova da minha vida, é o que posso dizer. Confrontei-me comigo mesmo. Percebi que bem lá no fundo ainda era um miúdo assustado com medo de perder o pai e que tudo o que fazia era para esconder-me disso.
O meu pai criou-me sozinho, a minha mãe deixou-o quando eu tinha 3 anos, consta que ela tinha problemas mentais ou qualquer coisa. Habituei-me a não pensar nisso ao longo dos anos do meu pai me proibir de falar nela.
O meu pai incutiu-me uma obrigação profunda de “ter sucesso” de ser um “grande homem” para não acabar sozinho e derrotado como ele. Claramente ele quis que eu fizesse tudo certo onde ele “errou” porque foi incapaz de aceitar o abandono da minha mãe.
Nunca aceitou e nunca saiu desse momento. Tornou-se na bússola das nossas vidas, deixou-me incapaz de amar livremente uma mulher sem desconfiar dela, deixou-me incapaz de descansar, de encontrar serenidade na vida porque cresci numa espécie de quartel com rotinas para cumprir, com um destino para preencher.
O que eu não sabia era que quando chegasse lá, ao destino, ao sucesso, também não teria paz, não teria descanso, não teria amor, carinho e companhia.
Quando parei, no hospital, não tive mais por onde fugir de tudo o que tinha acumulado dentro de mim. Por mais que tivesse conseguido continuar a reprimir grande parte desta desilusão, desta tristeza sem nome, a porta tinha ficado entreaberta, continuou a transbordar.
Tive que começar a lidar com isto para o qual nunca tinha criado ferramentas. Quando olhava para mim e tentava não fugir, percebia que continuava emocionalmente naquele lugar do menino que perguntava porque é que a mãe não ia voltar.
Fui lidando, semana a semana, consulta a consulta, lágrima a lágrima. Fui encaixando, percebendo quem é que eu era, quem é que gostaria de ter sido. Fui ficando menos rígido comigo, com as pessoas à minha volta. Comecei a subir os ordenados, já não sentia a obrigação de ter X dinheiro na minha conta por ano, as pessoas começaram a sorrir mais à minha volta, comecei a conseguir gostar mais delas. Conheci uma mulher nova, estamos só a conhecer-nos e estou a gostar imenso de não ter objectivos para ela, estou a gostar de ter companhia e carinho apenas porque quero e não porque “alguém” devia perceber que isso me era devido.
Gosto de viver mais devagar, gosto de gostar das pessoas e gosto de gostar um pouco mais de mim.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.