Uma história sobre tentar não sentir.
Se gosto de ganhar? Gosto, claro que gosto. Mas passado este tempo todo acho que seria mais sincero se dissesse que gosto mais de não perder do que ganhar. Eu sei, parece a mesma coisa, mas não é. Tenho quase 40 anos e tive que tropeçar muito para perceber isso.
Aos 20 e poucos anos ganhei o hábito de jogar às cartas com os meus colegas. Às vezes jogávamos a cigarros, cervejas, coisas de miúdos. Em épocas de exames, de stress, era para espairecer. Nos últimos anos do curso não tinha muita companhia para as cartas. Comecei a jogar online, recebi um vale de 2€ para começar, perdi-os logo. Criei outra conta e transformei esses 2€ em 8€. Senti-me o maior!
Uma noite fui com um amigo ao casino. Foi uma experiência brutal, foi real, foi sério! Eu queria ser como aqueles tipos de óculos de sol que atiravam fortunas para cima da mesa. Hoje tenho vergonha disso.
Na altura do meu primeiro casamento pensava que sabia o que era o amor, mas era mais companhia e amizade. Erros cometem-se. Tivemos um filho. Discutíamos tanto. Naquela altura quando havia tensão eu jogava, fosse no computador, fosse no casino. Eu dizia que não andava a gastar dinheiro, mentia.
Perdi muito dinheiro naquela altura, jogava para me escapar. Inventava despesas, dizia que tinha sido para arranjar o carro, uma prenda para os meus pais, comecei a sufocar nas mentiras… ela confrontou-me várias vezes, ameaçou-me, fez ultimatos. Eu dizia que sim, que ia parar, mas por dentro pensava que assim que eu ganhasse “à grande” ela ia ver, ia valorizar-me, perceber que eu era capaz. O pior é que às vezes ganhava “à grande”, mas perdia tudo logo a seguir. Nessas noites saía do casino a sentir-me milionário, mas na verdade ia apenas com menos 20€ no bolso.
O limite chegou quando faltou dinheiro para o meu filho. O divórcio foi feio… hoje mantemos contacto, mais pelo rapaz, mas é tenso. Ela pintou-me com más cores… não consigo dizer-lhe para não o fazer. Eu fui aquela pessoa.
Sozinho, apesar de poder fazer o que quisesse, perdi a vontade de jogar, senti-me sem motivação para o fazer.
Mais tarde conheci a minha nova mulher, casei-me. Senti-me aliviado porque já não jogava, não ia fazer a mesma asneira duas vezes.
Tive um segundo filho, as coisas pareciam estar a correr melhor desta vez, sentia-me mais homem, mais capaz, mais vivo!
Veio um azar de fora, perdi o emprego, a empresa faliu. Foi uma má altura no sector, muitas empresas fizeram cortes, “É a crise!”, dizia-se.
Lidei com as burocracias, avaliei as poupanças, fiquei com subsídio de desemprego. Procurei muito por um novo emprego, mas as propostas que recebi pagavam menos que o subsídio.
Aproveitei para passar mais tempo com o meu filho, com a minha família. Durante um tempo as coisas aguentaram-se assim. Mas a pouco e pouco fui ficando irritável, ansioso, muito preocupado com o desemprego, com a vergonha de não trabalhar, apesar de ter motivos, senti que estava a falhar à família. Tornei-me chato lá em casa.
A minha mulher insistia para eu ir sair com amigos para desanuviar, já não estava a conseguir aturar-me naquele humor.
Fui… acabei por ir parar ao casino. Não ia jogar, mas joguei. Senti a familiaridade do jogo. Abstraí-me das preocupações, senti-me aliviado, tive uma noite bem boa e fui para casa com 300€ no bolso… não é preciso contar o resto, pois não?
Daí para a frente recaí completamente no vício, no mesmo padrão, na mesma destrutividade.
As discussões começaram, o medo de perder o que tinha… a minha mulher salvou-me à sua maneira. Disse-me que ainda faltava muito para me deixar, que eu era mais do que aquilo. Obrigou-me a procurar ajuda, ela tinha uma amiga com um bom psicólogo – fui para lá, contrariado.
Nessa consulta fui calmamente “encostado à parede”.
O doutor disse-me: “Nas suas palavras, diz que se não mudar vai perder tudo. Tudo sendo o seu casamento, o seu filho, o seu amor-próprio. Mas diz-me também que não quer fazer terapia.”
Ele abriu a porta do gabinete e disse: “Então vá! Se não quer a minha ajuda não posso fazer nada por si.”
Três minutos ficámos em silêncio, ele à porta, eu sentado a pensar. Fiquei sentado.
Foi um silêncio estranho, constrangedor de se ver, mas tinha tanto a acontecer na minha cabeça que nem me apercebi.
Hoje agradeço aquele momento de silêncio, mudou a minha vida.
Ninguém senão eu mesmo podia tomar aquela decisão.
Conheci os meus demónios. Zanguei-me tantas vezes com o psicólogo. Mais tarde percebi que focava nele as minhas zangas. Ele só fazia perguntas, nunca me acusou de nada. As minhas respostas é que me perseguiam. Lidei com a forma como fugia dos problemas, os meus motivos para jogar.
Havia uma parte de mim que queria ser miúdo para sempre.
Mas ser homem, ser pai e marido não é só lidar com os bons momentos, é aguentar a tempestade, é manter a cabeça erguida quando tudo o resto cai. É conhecer-me no bom e no mau, olhar-me de frente e não ter vergonha do que fui nem do que sou.
Hoje não jogo. Sei que podia fazê-lo sem perigo, mas prefiro fazer outras coisas. Sinto-me bem assim!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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