Uma história sobre a morte da indiferença
Nunca pensei que me acontecesse a mim. Deve ser o que toda a gente diz, mas é verdade, nunca pensei. Pensava que era preciso um trauma grande, uma coisa muito má ou problemas no cérebro. Eu não tinha essas coisas. Tinha a minha história, eu não dava nada por ela.
Onde é que começo? Olha, pelo casamento. A cerimónia foi linda! Foi onde eu queria, foi tudo tal como eu pensava que devia ser. Até as coisas parvas tiveram a sua graça, todos os casamentos deviam ter um tio bêbado como o meu!
Tinha 26 anos, o meu marido 28. Não éramos ricos, mas não nos faltava nada do que era importante.
Eu trabalhava já desde os 18 em lojas de roupa, numa das cadeias grandes. Fui subindo, já estava a gerir uma das lojas. Eu gostava, mas dava imenso trabalho, deve ser o que toda a gente diz. O meu marido estava há pouco tempo numa empresa nova, ele é programador. Estava num horário tarde/noite. Tinha que ficar até tarde, qualquer coisa sobre sincronizar com servidores estrangeiros, não sei. Sei que ele andava satisfeito.
Naquela altura eu não pensava muito no passado nem no futuro, ia fazendo a minha vida dia-a-dia. Andava no ginásio, trabalhava muito, ia falando com as minhas amigas, juro que parecia estar tudo bem. A única coisa era que eu andava muito cansada, mas não percebia porquê. Dormia bem, comia bem, fazia desporto, estava com amigos.
Eu gostava de poder dizer que a minha depressão começou com um atropelamento, um atentado terrorista, alguma coisa assim grave, talvez tivesse sido mais fácil aceitar.
O dia em que começou foi uma terça. Sim, já devia estar comigo há muito tempo, mas foi numa terça que pareceu começar. Era final do dia, eu estava sozinha em casa, estava à janela a pendurar roupa. Enquanto pendurava umas meias, uma mola saltou-me das mãos, vivemos num quinto andar, fiquei a ver a mola a cair em camara lenta … a cair… até bater no quintal dos vizinhos. Não consigo explicar porquê, mas fiquei a olhar pra mola lá em baixo. Estava cheia de pena da mola, ali caída e sozinha.
Eu sei que parece parvo, na altura também me pareceu parvo, mas quanto mais tentava esquecer a mola, mais olhava e mais triste ficava. Parei o que estava a fazer e fui sentar-me no sofá, estava exausta. Fiquei sentada sem me mexer até o meu marido chegar 3 horas depois. Acho que devo ter dormido, mas não me lembro.
Ele estranhou a casa às escuras, ficou logo preocupado comigo, achou que era melhor irmos ao médico. Eu disse que não era preciso, só precisava de descansar. Mandámos vir umas pizas, soube-me bem a companhia dele, a mudança na rotina, pensei que não era nada…
Nos tempos seguintes fui ficando sem forças, sem vontade, uma panela de pressão furada… no trabalho conseguia fazer as minhas tarefas, mas não tinha vontade de fazer mais. Deixei de ir ao ginásio, não tinha energia para aquilo. Em casa fui-me desleixando. Não somos daqueles casais em que a mulher faz tudo, mas fazia pelo menos metade das coisas, mas mesmo isso começou a ser demais. As coisas começaram a acumular. O meu marido, por muito que desculpasse, começou a ficar irritado quando tinha de tratar de tudo. Eu também ficaria.
Fui ao médico de família, ele disse que eu não tinha nada. Devia andar stressada. Deu-me uns comprimidos que tomei 3 semanas, não fizeram nada. Fui a uma psiquiatra, ela prescreveu outros comprimidos. Esses fizeram muito, não gostei nada. Mas fiquei “bem” conseguia concentrar-me, tinha energia suficiente, conseguia fazer as minhas tarefas, de fora parecia estar bem. Mas não me sentia eu mesma, era estranho, também não queria que me tocassem. Isso causou problemas em casa, claro.
Comecei a ter consultas com um psicólogo, todas as semanas. No início não senti que fizesse nada, mas pelo menos podia desabafar sem que fosse esperado nada de mim, continuei.
Houve muita coisa que eu não queria falar logo, mas acabei por chegar lá. Isto tem sempre a ver com a infância, não é? Se calhar não é sempre, mas comigo foi.
Quando eu era miúda parecia que estava tudo bem com os meus pais, mas aí aos meus 7 anos vi-os a discutir. Não se aperceberam que eu estava a brincar debaixo da mesa, gritaram um com o outro, disseram coisas mesmo más. O meu pai tinha outra…
Depois de gritaram e gritarem, a minha mãe pôs o meu pai fora de casa, no momento em que ele saiu bateu com a porta. O baldinho de plástico com molas da roupa que estava em cima da mesa caiu, as molas caíram à minha frente, espalharam-se todas no chão. Senti-me miserável, o meu mundo tinha acabado de ser virado do avesso.
Ele fez família com a outra, mal o vi nos anos seguintes. A minha mãe voltou a casar. Tenho um bom padrasto, mas em pequena tinha muitas saudades do meu pai. Nunca podia admiti-lo em voz alta para a minha mãe não se sentir mal.
Ela proibiu toda a gente de dizer o nome dele à frente dela. Ela mostrou-se forte, firme, seguiu em frente com um sorriso. Eu imitei-a. Nunca fiz as pazes com essa tristeza, esse abandono.
Coincidência ou não, deprimi quase na mesma idade que a minha mãe tinha quando expulsou o meu pai de casa.
Eu nunca me esqueci destes acontecimentos, mas tinha-me esquecido da tristeza, das saudades, da infância cortada no antes e depois do meu pai. No dia em que a mola me caiu das mãos, essa tristeza voltou toda depois de anos e anos fechada dentro de mim.
Sem perceber eu estava na expectativa de ser abandonada agora pelo meu marido. Não, ele não foi arranjar outra nem quis um divórcio, era uma sombra do meu passado que estava a voltar.
Para mim o que é que resolveu o problema?
Com a ajuda que tive consegui finalmente chorar tudo o que não tinha chorado em pequena, fiz o luto de tudo o que não foi. Fiz as pazes com a minha tristeza, a minha zanga com o meu pai por se ter ido embora, e com a minha mãe por não me ter deixado estar triste.
Pude finalmente deixar morrer a minha indiferença ao meu pai e admitir tudo o que senti.
Durante este percurso percebi que tinha medo de ter filhos, medo de falhar. Agora já não tenho medo. Acho que vou falhar em alguma coisa, todos falhamos, mas sinto-me livre, já não me sinto presa ao destino dos meus pais.
Agora já não finjo sem saber que finjo, agora consigo ser quem sou, mas ainda sei fingir se quiser!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
Gostou?
Inscreva-se para receber os Contos Clínicos no seu email de cada vez que sair um Conto novo. Receberá também conteúdo exclusivo em cada Conto.
Se quiser falar connosco, se estiver à procura de ajuda para si ou para alguém, entre em contacto.
Michael Dickinson