Uma história sobre a ditadura da felicidade
Estamos naquela altura do ano outra vez, não é? As músicas de Natal ouvem-se por toda a parte, as listas para os miúdos têm de ser preenchidas, há que encomendar o bacalhau…
Quando eu era miúda eu adorava o Natal, era a melhor altura do ano. Íamos todos para a casa da minha avó lá no Norte, ela tinha uma lareira enorme. Os meus tios vinham todos, os meus primos estavam lá. Havia um ambiente de festa como mais nenhum. Adorava as sobremesas, adorava ficar a brincar com os meus primos e a ver aqueles filmes de natal que davam sempre naquela noite, ainda não havia TV por cabo e muito menos por fibra.
Todos os anos era um momento único, mesmo quando deixei de ser criança. Mas a vida é mudança, não é? Por mais que me custe admiti-lo, as coisas mudam.
A minha avó faleceu. Já tinha uma idade bastante avançada. Foi um momento triste. No natal seguinte ainda conseguimos juntar a maioria dos familiares lá na casa, mas já não era a mesma coisa, havia um sentimento de falta.
No ano a seguir um dos meus primos mais velhos estava no hospital, com uma situação bastante complicada, felizmente resolveu-se, mas o evento ficou marcado pelo tempo que passámos todos a visitá-lo no hospital.
No ano seguinte já não havia casa da avó, foi transformada em turismo rural. Começámos a ir passar o Natal na casa uns dos outros, mas o grupo foi ficando cada vez mais pequeno até que eu e os meus pais acabámos por optar por fazer apenas um jantar pequeno em casa e depois almoçar com alguns familiares no dia seguinte. Por isso esse passou a ser o espírito natalício para mim, aquilo que já foi e que já não era… o jingle bells e a Mariah Carey passaram a sons que faziam lembrar outra época, mas que em nada invocavam o desejo de celebrar.
Nada disso me incomodaria se não fosse o peso constante da expectativa da felicidade. No trabalho era só jantares de natal, os amigos a querer celebrar, a televisão sempre a aludir ao consumismo natalício, os centros comerciais todos decorados… não me sentia no direito de não querer o Natal.
Isto piorou quando me casei e tive os meus próprios filhos. Quando eram muito pequenos ainda me safava a não ser festiva, mas cresceram e como crianças bem-dispostas que eram queriam celebrar.
Aturei isto bem um ano, dois, três, mas começou a ser cada vez mais difícil. Eu não queria o Natal, mas ninguém me deixava não querer, o meu marido tolerava a minha falta de entusiasmo, mas não admitia que eu roubasse aos miúdos a felicidade da ocasião. Aquilo que no início era só umas trocas de olhares entre nós passou a ser discussões em voz baixa, mas intensas. Chegou ao absurdo de, a partir de finais de outubro, eu começar a andar ansiosa, irritada, deprimida. Eventualmente, num mês de janeiro decidi procurar ajuda psicológica, se não o fizesse eu ia ter que ir de férias no ano seguinte em vez de estar com a minha família.
Foi um processo curioso, eu sabia que estava a impedir os meus filhos de viverem livremente a quadra, mas ao mesmo tempo não sabia.
Sem me ter dado conta, estava presa naquele tempo ideal, congelado no tempo. Tudo o que fosse menos não seria suficiente. Ora, isso é absurdo, nunca tive medo de crescer, nunca me lamentei pela infância, antes pelo contrário. Então porquê esta fixação?
Eu chorava a morte de uma inocência que desconhecia, chorava a incapacidade dos meus pais de reinventarem esta data e de se entregarem ao mais fácil, eu chorava a falta de importância que todos deram a esta mudança. Eu chorava porque ninguém percebeu o quanto era uma altura importante para mim. Chorava porque estava zangada com os adultos que acharam que os miúdos não se importariam assim tanto com a mudança, porque é isso que os adultos às vezes faziam com os desejos das crianças, ignoram-nas por dar muito trabalho, por ser chato, etc.
Quando me ouvi finalmente, ao fim de muitas sessões, a conseguir dizer tudo isto, percebi que na minha amargura me estava a tornar no foco da minha zanga original: uma pessoa autocentrada que ignorava os desejos das crianças porque sim (aos olhos de uma criança qual a diferença entre dois motivos incompreensíveis?).
Consegui fazer o luto do meu Natal perfeito e comecei a investir no Natal possível, real, do presente, aquele que ficaria nas memórias das minhas crianças.
Actualmente podemos não ter 30/40 pessoas juntas no Natal, mas posso dizer, com alegria, que é das alturas do ano em que fazemos mais passeios em família, vamos a mais eventos, tiramos mais fotos todos juntos e temos tradições só nossos.
Não tenho o Natal da minha infância, mas tenho o Natal da infância dos meus filhos e estou tão grata por poder vivê-lo livremente.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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