Uma história sobre segurar uma família

 

“Isso tá tudo na tua cabeça!” Ouvi isto tantas vezes na vida, já não aguentava ouvir pessoas a não levar a sério as minhas queixas. Sabem lá o que é viver com uma autoimune! Sabem lá o que é não saber quando é que vai piorar, se vai piorar, etc…

Desde os 12 anos que andei de médico em médico, a única conclusão a que chegavam era que sofria de uma autoimune, uns diziam que era mais isto, outros que era mais aquilo, eu sempre aflita no meio, sem saber o que pensar, os meus pais sempre estiverem presentes para me ajudar, iam sempre comigo às consultas.

Fui tendo crises ao longo dos anos, às vezes mais graves, outras menos. Aos 25 ficou pior, ficava de cama montes de vezes, perdi a autoconfiança, andava uma pilha de nervos, a comida deixava-me sempre com náuseas, não tinha concentração, perdi imenso peso.

Os meus pais estavam cada vez mais preocupados comigo, já não sabiam o que fazer. Depois de correr inúmeros especialistas, alguns alternativos pelo meio, calhou falarem com mais um especialista que voltou a sugerir aquilo que já outros tinham sugerido: estava na altura de procurar ajuda do foro psicológico. Até aqui eu nunca tinha aceite, achava que me estavam a chamar de maluca, a dizer que eu não tinha problema nenhuma senão na minha imaginação!

Desta vez, depois de mais uma conversa comprida com os meus pais, cedi, aceitei ir. Se soubesse nessa altura o quanto me ia custa, tinha-me recusado. Ainda bem que não sabia.

Comecei as consultas todas as semanas.

Os primeiros 4 meses passaram-se sem que eu notasse diferenças em mim, ia lá falar das minhas queixas, de tudo o que tinha deixado por fazer na vida por causa desta doença, ele ia ouvindo, não dizia muito, deixava-me perceber que era importante eu dizer tudo o que tinha por dizer. Apesar de achar que não estava a fazer muito, os meus sintomas andaram mais controlados, por isso os meus pais não queriam saber da minha vontade de desistir, continuei a ir.

Depois, nas conversas, começou a acontecer uma coisa que me irritava: ele perguntava-me como é que teria sido a vida sem a doença e como é que seria no futuro se eu não tivesse a doença. Das primeiras vezes respondi a dizer que teria sido espetacular assim e assado, que seria brutal no futuro se ficasse livre disto. Depois, na sessão seguinte voltava a pergunta a meio das conversas, e na sessão seguinte e na seguinte, até que começava a responder torto.

Depois, num dia em que já estava cansada demais para estar bem-disposta, cansada demais para ser positiva, cansada demais para me preocupar com a opinião dos outros, ele perguntou-me outra vez. Fiquei uns minutos sem responder, só a pensar, só a sentir… comecei a falar e a falar, a olhar para a minha história à luz das coisas que andava a descobrir sobre mim e respondi: Se eu nunca tivesse tido esta doença, não tinha tido pais e se eu ficar melhor, eles divorciam-se. Disse isto, foi uma frase que pesava toneladas. Quando tirei esse peso de mim não me senti mais leve, senti-me a cair, sem forças, depois de tantos anos a carregar esse peso. Senti-me a cair para dentro de um caixão cheio de água, dentro de mim mesma. Andei uns dias assim, até falarmos outra vez. Percebi que aquele era o ponto de partida, era daquilo que eu andava a fugir, não a separação dos meus pais, mas do mundo de dor que eu sempre associei a essa separação.

Depois de cair para dentro dessa dor que tinha em mim, levei um grande bocado de tempo a conseguir sair, aí sim, precisei de ajuda. Apesar do horrível que foi, havia qualquer coisa de verdadeiro naquilo, já não tinha que andar com aquela me*da daquele sorriso estampado por cima das minhas ideias, já não tinha que ser positiva o tempo todo.

Fui fazer análises, tive a certeza que estaria muito pior, já que me sentia assim, mas não, estavam melhores que nunca. Aquilo não podia ser! Não fazia sentido!

Fui falar disso na terapia, achava que eu devia ser um caso de estudo, que não era possível mudar assim. Mas afinal fazia mais sentido do que eu pensava.

O que é que tinha acontecido? Eu não fazia ideia que isto era possível, até fui fazer pesquisas para confirmar.

Quando empurramos os sentimentos tão lá para o fundo que as deixamos de sentir, pode acontecer o corpo “sentir” por nós. Não era só da minha cabeça, estava realmente doente, tenho centenas de relatórios médicos que o confirmam, mas… o início estava nestas emoções. Eu sempre pensei que manter-me positiva e focada era o melhor, afinal só empurrei mais e mais fundo a minha dor…

Com esta dor na alma, já tinha alguma coisa mais “palpável” para trabalhar na terapia.

Se era verdadeiro o meu medo? Sim, os meus pais estariam separados se não fosse pela minha doença e tinham todas as intenções de se separar assim que eu saísse de casa. Já estava com 26 anos, já não devia faltar muito. Não havia ódio, longe disso, mas também não havia o que era preciso para manter um casamento.

Em criança eu devia saber isto a algum nível, vivia aterrorizada com a ideia de ficar sozinha, o divórcio deles seria a solidão para mim. Esse medo da solidão foi o foco de inúmeras sessões, de onde vinha, até que ponto estava ligada ao real, porque é que a sentia, etc.

No início via pouco mais que um vale de sombras e medos… depois a escuridão começou a levantar-se. Percebi aos poucos que preenchi as lacunas da vida familiar com medos, com monstros imaginários para tomar o lugar de uma coisa muito mais mundana: um casamento sem amor. Amavam-me a mim, sim, não tenho dúvidas, mas não um ao outro. Depois comecei a ficar doente e eles foram-se mantendo. Sem perceber, a minha dor, feita agora doença real, obrigava-os a manterem-se uma família, por mim, pela falta de amor que eu inconscientemente sabia estar lá.

Mas já não era uma criança assustada, já podia aceitar que o que foi já foi. Podia decidir ser mulher, deixar morrer essa velha ilusão, esse ideal de algo que nunca foi, mas que eu precisei tanto que fosse. Mas precisei nessa altura, agora era algo que mantinha por não conhecer mais nada. Mas já podia abrir os olhos para o mundo.

Saí de casa, melhorei, continuei na terapia, ajudou-me muito para ultrapassar o divórcio deles. Nenhum dos dois expressou muita dor, apenas um certo alívio e medo de me magoar. Mas ultrapassámos tudo isso. Hoje quando os visito, cada um na sua vida, sinto-os a viver, a desabrochar como nunca imaginei ser possível. Continuam amigos, podem juntar-se comigo por vezes, mas já todos aceitamos que há coisas que não se podem forçar.

 

Cresci, abandonei as minhas esperanças de criança que já só me prendiam. Agora estou disponível para o que vem a seguir, tenho medo, claro que tenho, a liberdade é assustadora às vezes, mas bora lá!

 

 

 

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

 

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