A minha revolução

A minha terapia terminou há pouco tempo, ou como gosto de dizer, a minha terapia assistida terminou. Duvido seriamente que alguma deixe para trás o pensamento crítico que aprendi a ter neste tempo.
Quando procurei ajuda eu estava num farrapo, numa crise não de identidade, mas de falta de identidade. Até tinha as coisas que “devemos” ter: casa, família, carro e rotinas, às vezes até férias no estrangeiro. Mas a cada ano que passava conhecia-me menos, tinha menos ligação com a minha vida, sentia-me uma estranha na minha pele.
Quando falei com umas amigas minhas, levei com aquela treta do costume: “ah isso é depressão, tens que tomar…”. Fui medicada, ajudou-me, mas não resolveu o meu problema.
Não sabia bem explicar o que é que tinha. Não era falta de vontade de fazer coisas, era como falta de vontade de ter vontade…? Sentia que já há tanto tempo que sabia que havia outra vida que eu quis em tempos viver, mas que não pude e por isso parei. Parei de ser, de sentir, de querer. Mas não me sentia deprimida, triste, abatida, nada… eu não sentia nada além da sensação de estar no sítio errado.
A minha família sofreu com isto, mas apoiaram-me, conseguiram arranjar-me ajuda.
Comecei a ter consultas de psicologia… durante anos. Com essa ajuda mudei, saí da plateia para o palco da minha história.
Como é que posso explicar isto? Começando pelo início.
Hoje em dia o 25 de Abril é visto como muitas coisas, um feriado, uma festa, uma desculpa para não trabalhar, mas para mim e para a minha família será sempre um símbolo gigante.
Eu sou da geração que nasceu no pós-revolução, sou da geração que viveu sob a pressão de gozar todas as liberdades que foram negadas à geração anterior sem fazer a mínima ideia do que é que isso significava.
Cresci na sombra de um avô que “desapareceu” depois de alguém o acusar de ser comuna, na sombra de outro avô que foi preso pela PIDE e que nunca mais foi o meu avô depois disso. Cresci com uma mãe que deprimiu jovem demais e nunca recuperou totalmente, com um pai que me incutiu a enorme necessidade de abraçar a minha liberdade e de me fazer à vida, de fazer tudo aquilo que lhe foi negado e pelo qual ele lutou tanto.
Por isso, tanto o meu pai como a minha mãe, apesar de celebrarem a revolução, continuaram sempre a viver em comparação com o que aconteceu antes, estranhamente presos a algo que lhes deu identidade. O meu pai não queria ser assim, mas ficou um pouco à deriva, sem referências. A minha mãe, fruto da sua história ou da sua depressão, ficou sempre num qualquer momento do passado, como se agora, com a batalha ganha, ela pudesse finalmente desligar-se da vida.
Sou filha única, cresci entre dois tempos, o tempo da mulher honrada que não tem ouvidos e o tempo da emancipação feminina. A crescer eu quis sempre viver no presente e no futuro, mas nunca consegui ignorar a tristeza da minha mãe por uma vida inibida, nem consegui aceitar a pressão do meu pai para fazer algo impossivelmente livre. Cresci a recear o passado, vendo o presente como algo a que não conseguia aceder e o futuro como algo que não era para mim.
Foi tão, tão difícil conseguir perceber estas ideias que agora me parecem tão simples. Estas amarras que me prendiam a um não lugar estavam profundamente enraizadas em mim, como se fossem eu.
É este o poder da opressão… entranha-se na cultura, entranha-se nas identidades, eu nem era viva nesse tempo e mesmo assim paguei o seu preço.
Consegui, com ajuda, desmontar a minha história, peça a peça, ver as ligações, ver o que é que era de mim e o que é que eu queria deixar no passado.
Hoje, uma geração depois, sou finalmente livre, livre não só nas acções, mas na alma e no pensamento também. Talvez os meus filhos possam fazer o que o meu pai pediu de mim, mas não lhos exijo, eles que escolham, porque podem!
Viva o 25 de Abril, que cada o um o celebre à sua maneira, viva a liberdade, a paz, a bondade e o respeito!

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

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Michael Dickinson

 

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