Uma história sobre trabalhar numa empresa doente
Eu tinha 28 anos quando fui “com a testa ao chão”.
Eu tinha 24 anos quando terminei o curso. Tirei um curso na área da saúde, pensando, erradamente, que havia boas saídas para tudo o que está ligado à saúde, ingénua, mas enfim.
Andei à procura de trabalho, não encontrei nada na minha área, fui trabalhar noutras coisas. Sentia-me derrotada, tanto estudo para quê? Depois concorri a uma vaga numa empresa da minha área.
Fui chamada para a entrevista, foi com o dono da empresa, senti-me logo valorizada, ele gostou imenso de mim, achou que eu tinha excelentes competências e que tinha imenso potencial para crescer na carreira.
Comecei a trabalhar lá, parecia que ia tudo finalmente encaixar-se. Comecei a ganhar bem logo de início, com a promessa de depois ganhar mais.
A empresa tinha uma forma revolucionária de tratar os doentes, algo muito mais à frente que os outros tratamentos disponíveis no mercado. Não ia bem ao encontro do que eu tinha estudado, mas uma pessoa já sabe que no mercado de trabalho não é tudo como na faculdade, além disso havia um conjunto de estudos que fundamentavam a prática. Aceitei que estava tudo bem, não fui ler os estudos.
Vi realmente resultados muito rápidos nos doentes, além disso os meus colegas pareciam estar todos tranquilos com o que estávamos a fazer. Deixei-me estar.
Ao final do primeiro ano achei que não podia estar melhor. Não estranhava as pessoas pagarem tanto pelos tratamentos, afinal era revolucionário e estávamos no sector privado.
Na empresa o ambiente era muito bom. As minhas colegas mais velhas que tinham tido filhos até levavam os bebés a tirar foto com o chefe, ele dizia sempre: “anda cá tirar uma foto com o tio!”. Havia esta ideia que a empresa era como uma família. Devia ter visto os sorrisos forçados.
Corria tudo tão bem que nem hesitei quando me pediram para alargar o meu horário de trabalho.
Nem me apercebi quando os meus amigos deixaram de me convidar para sair, afinal nem tinha tempo para pensar nisso.
Houve um dia em que ouvi o meu chefe a rever a contratação de uma nova. Ele estava a dizer que por ele, ela ficava, era muita gira! Nem liguei, achei que já tinham estado a falar das competências da pessoa.
Mais tarde soube que o meu chefe afinal não tinha qualquer tipo de formação académica, mas que tinha criado esta forma de tratamento. Devia ter pensado que alguma coisa não batia certo, mas deixei-me levar pela ideia da empresa: o chefe era um indivíduo de tal forma extraordinário que isso nem importava.
Uma vez uma colega minha, que estava lá há imenso tempo, saiu aos gritos a dizer que se despedia, que não podiam trabalhar assim. Falou-se muito mal dela depois disso, de como devia estar a passar um mau bocado e que devia era procurar ajuda para lidar com os seus “problemas”. Assunto arrumado.
Um dia saiu uma publicação numa revista digital muito conhecida, que criticava o nosso trabalho, chamava-nos aldrabões, apontava as falhas do nosso método, atacava os estudos. Eu fiquei muito indignada. Quem eram eles para falar de uma coisa que não percebiam?!
Na reunião de trabalho do dia seguinte o meu chefe estava furioso, mas disfarçava, tentava dar a entender que má publicidade é publicidade à mesma. Deu a entender que deveríamos ir às redes sociais defender o “nosso” nome, defender os estudos e o método.
Comprei esta causa, eu iria defender o bom nome. Não percebi o silêncio das minhas colegas mais velhas. Nessa noite, apesar das horas já passadas no trabalho, abri o portátil e fui ver o que podia fazer. Comecei por ler os estudos para organizar as ideias.
Fiquei confusa, não percebia onde é que estava o resto dos estudos. Achei que devia estar a ler uma versão incompleta, um rascunho não terminado.
No dia seguinte fui falar com a minha superiora, perguntei-lhe pelo resto do estudo. Ela disse-me que aqueles eram os estudos, contestei, a dizer que assim não podia ser, que faltava alguma coisa. Ela baixou a voz e levou-me para um canto e explicou-me, sem margem para dúvidas, que aqueles eram os estudos e que eu devia voltar ao trabalho e concentrar-me nisso.
Nesse momento senti um calafrio viscoso a descer-me a coluna, senti um frio muito desconfortável no estômago.
Nessa noite fui ler os estudos novamente, reli-os a todos 10 vezes, queria que o erro fosse meu. Não era. Os “estudos” eram uma anedota pegada, não tinham qualquer tipo de fundamento, eram inspirados em ideias completamente ultrapassadas e francamente ridículas. Os “resultados incontestáveis” que “provavam” a validade do método não eram reais, foram inventados.
Caiu-me tudo aos pés. O que é que eu tinha feito? Como é que eu me tinha deixado levar? O que é que eu fiz aos pacientes que tratei?
Foi muito complicado continuar a trabalhar nas semanas seguintes, tentei seguir a minha rotina como sempre, mas não estava a dar. Não percebia como é que eu conseguia estar tantas horas naquele sítio, como é que toda a gente parecia levar-se a sério. Como é que a opinião do meu chefe era levada em conta nos tratamentos se ele não percebia nada do assunto?!
Comecei a perceber que as minhas colegas mais antigas não eram reservadas, mas sim indiferentes. Faziam o seu papel e não queriam saber de mais nada.
Tirei umas férias. Entrei em contacto com a colega que se tinha despedido, a “má da fita”. Ela explicou-me que tinha descoberto o que se estava a passar com casos antigos, que havia inúmeras queixas legais contra a empresa, que os tratamentos eram inúteis, que as pessoas andavam a pagar fortunas e que não conseguiam avançar com as queixas porque tecnicamente o que se fazia não era um tratamento de saúde mas sim de lazer.
Comecei também a perceber que muitas das minhas colegas percebiam muito pouco da sua área, que as suas médias de curso foram baixas, mas que eram todas bonitas… percebi que na minha entrevista não interessou nem um bocadinho o que eu tinha estudado, só interessou a minha aparência.
Não consigo descrever o sentimento de injustiça, de humilhação, de sentir que tinha sido conivente com uma ilusão doentia que pôs em causa a saúde e o bem-estar de tantas pessoas enquanto me convencia que fazia parte de alguma espécie de elite.
Andei nesta confusão mais uns tempos e depois saí.
Percebi que não podia fazer nada para impedir a empresa de funcionar, não podia reparar o que tinha feito.
Afundei-me na culpa e vergonha, deprimi. Deve ter sido a coisa mais saudável que fiz neste processo todo. Isolei-me do mundo, demorei algum tempo a sentir o mundo lá fora continuava, que só o meu mundo interno é que estava do avesso.
Acabei por procurar apoio psicológico. Nessas consultas pude finalmente desabafar tudo, todos os podres, toda a vergonha e zanga, sem medo de represálias.
Depois de me “esvaziar” desses conteúdos todos pude olhar-me ao espelho. Ver quem era, o que tinha feito e… reconstruir-me. Demorei a perceber, mas eu ainda era eu, ainda era a pessoa que tinha sido antes de fazer parte daquilo a que apenas posso chamar de seita, que ainda percebia da minha área profissional e que podia reencontrar o meu autorrespeito.
Nunca imaginei que um mau emprego pudesse pôr de tal forma em causa o bem-estar de uma pessoa, nunca me imaginei a desmoronar por ter sido enganada, mas foi o que aconteceu.
Aprendi que a desonestidade, mesmo quando não é reconhecida, destrói uma pessoa por dentro.
Agora, aos 30, estou finalmente a trabalhar na minha área, não é fácil, não há ilusões de tratamentos milagrosos, mas há honestidade, há dormir em paz com a consciência tranquila, há saber que sou quem sou sem ter de andar a fingir para mim mesma.
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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Michael Dickinson