Uma história sobre consumir para distrair
As drogas são uma coisa má, né? Pois, mas todo este tempo depois já posso dizer a verdade: quando não eram as drogas era outra coisa. Umas coisas agarram mais o corpo que outras, mas o que importa é a vontade, o desejo.
Desejo de quê? Pois… acho que foi para saber responder a isso que fui procurar ajuda.
Um gajo quando é miúdo, ou quando está no meio do vício, não sabe porque é que está a fazer o que faz. Diz que é porque é bom. Ok, para começar sim, mas quando se volta e se volta e se volta…?
Quando eu era criança, dizem-me, eu via horas e horas de televisão sozinho e gostava. Aos 11 jogava aqueles jogos de cartas, Magic – the Gathering, com os meus amigos. Mas nenhum levava aquilo tão a sério como eu, ninguém tinha tantas cartas como eu. Aos 13 já não queria saber dessas cartas, jogava videojogos sempre que não estava na escola ou nos treinos. Houve vezes que fiz directas sem me aperceber, os meus pais não deram por nada.
Durante a adolescência havia sempre alguma coisa para consumir, cigarros, charros, bebida a mais, depois foram aparecendo as pastilhas, o MD, por aí adiante… Nunca me aproximei das piores, da heroína e assim. Não queria ser um “agarrado”, mas agora acho isso irónico porque havia sempre um vício qualquer.
Depois dos 20s mantive alguns hábitos, uns quantos consumos ao fim-de-semana, uns copos de vinho a mais com os amigos, qualquer coisa “extra” sempre que possível.
Quando é que achei que tinha um problema? Quando quis viver a vida de “adulto”. Quando quis que uma relação durasse mais tempo, quando quis ter uma casa com alguém, quando uma namorada minha acabou comigo porque queria ter filhos e disse que nunca poderia tê-los comigo porque eu era “um miúdo de cabeça”. Essa doeu.
Sempre disse a mim mesmo que tinha as coisas sob controlo, mas nunca me tinha obrigado a ficar “limpo”. Decidi que era desta, deitei tudo fora, não me deixei nenhuma alternativa. Se queria divertir-me teria que arranjar outra forma de o fazer.
As primeiras duas semanas passaram-se bem, andei ocupado, depois comecei a andar impaciente, irritável, sem vontade de ver ninguém, alguns amigos chatearam-se comigo.
Num dia fiquei em casa, tava de folga, queria fazer alguma coisa, mas não sabia o quê. comecei a arrumar. Encontrei uma caixa de fotografias antigas, desde que era criança. Pus-me a organizar os álbuns… encontrei uma foto de mim aos 7 anos a ver TV, sozinho, no meio dos peluches que eu tinha posto ao meu lado para me fazerem companhia. Não tenho palavras para o que se passou a seguir: comecei a chorar descontroladamente, não conseguia parar. Fiquei horas a chorar. Ainda pensei em ligar a alguém, mas quando pensava nisso ficava furioso, não conseguia perceber o que estava a sentir.
Andei semanas assim, um farrapo, uma amiga minha disse-me que eu tava com uma depressão, se era depressão ou outra coisa não me interessa. Sei que aceitei a sugestão dessa amiga e fui fazer terapia.
Bom, o que é que eu posso dizer? Para começar detestei. Era muita lento, eu queria resolver aquilo depressa e não queria medicação. Eu pensava que ia a umas poucas consultas e pronto. Acabou por durar vários anos. Gostava de conseguir explicar o que é que aconteceu nesse tempo, com essa ajuda, mas não tenho muito jeito para isso.
Aprendi a ser paciente, depois de aprender isso consegui começar a ir à origem das minhas questões. Porque é que me “desmontei todo” por causa de uma foto? Imaginem que estão a olhar para essa foto e a imagem faz zoom para fora e conseguem ver o resto da casa… teriam visto os meus pais aos gritos um com o outro, achando que eu não ouvia com o som da televisão. Teriam visto as noites em que a minha mãe ficava a chorar sozinha no quarto e o meu pai fora, teriam visto as noites com o meu pai a servir-me salsichas frias directamente da lata para o jantar enquanto falava ao telefone com não sei quem e a minha mãe estava de turno. Teriam visto as tardes que eu passei sozinho em casa a ver TV, com fome para lanchar, mas sem saber dos meus pais ou se iam zangar-se comigo se eu comesse o pão que havia na cozinha.
A separação aconteceu quando eu tinha 12 anos, aquilo tava insuportável em casa. Por isso é que eu era o melhor jogador de Magic, eu concentrava-me naquilo mais do que qualquer amigo meu porque era a única coisa boa que eu tinha. Mesmo depois da separação a vida em casa nunca foi boa. Aprendi a chutar pra frente, aprendi a andar sempre ocupado, a não pensar numa coisa que não tinha solução. Depois das aulas tinha treinos, dava sempre mais que os outros para me cansar, para não ficar acordado à noite, jogava videojogos para não pensar, se tinha insónias jogava a noite toda. Depois foram as drogas, eram uma forma brutal de substituir a solidão e a tristeza com euforia, com excessos.
O problema é que esses hábitos, essa forma de estar ficaram comigo. Eu não tinha paciência para lidar com nada que não gostasse. Sempre que possível eu fugia da minha vida, até que mais de metade da minha vida era apenas uma fuga. Quando tinha alguma relação boa eu destruía-a, tal como os meus pais destruíram-se um ao outro.
É normal que a aquela namorada me dissesse que eu era um miúdo, porque era. Eu nunca cresci para além daquele ponto. Andei sempre a adiar a vida, a fugir, a evitar. No fundo estava a evitar a montanha de dor, solidão, tristeza e desilusão que tinha enterrado debaixo de todas as distracções. Quando tirei as distracções foi apenas uma questão de tempo até ser esmagado por tudo o que tinha abafado.
Confrontei os meus pais, deparei-me com indiferença, a indiferença que sempre soube estar lá, mas que eu não queria ver. Vi-me forçado a fazer o luto de uma infância que nunca foi, de uma vida a olhar para o lado para não pensar.
Já disse que detestei a terapia? É verdade, detestei encontrar tudo isto, mas acho que me salvou a vida. Hoje acho que tenho uma espécie de paz dentro de mim, acho que as cicatrizes emocionais estão a fechar, já não sinto uma dor tão crua quando penso no passado.
Conheci uma pessoa nova, cheia de vontade de viver, não liga a vícios, gosta de conversar, interessa-se por mim, pelas minhas ideias, por saber quem sou. Estamos felizes (só que agora sei que a felicidade também tem tristeza) e dentro de 6 meses nasce o nosso filho!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.
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