Uma história sobre a adolescência moderna
Então, como é que é? Tá-se bem, ou quê?
Então, eu? Tenho 18 anos, vou acabar este ano o 12º ano e tou há 3 semanas sem telemóvel! Haha, não é por nada, é só porque parti o ecrã e ainda não arranjei.
Porque é que tou a falar? Porque no ano passado passei-me. Eu já tinha problemas, né? Eu ficava sempre ansioso quando tinha um teste, ou quando ia a uma festa, ou quando queria falar com alguma miúda.
Eu passei-me quando tive um teste de matemática, eu até sabia aquilo, mas começou-me a faltar o ar, fiquei com tonturas e tive que sair da sala, já não tava a aguentar tar ali. Depois faltei às aulas o resto da semana. Foi o que faltava para o meu pai levar-me a uma consulta de psicologia, que ele já andava a insistir há uns tempos. Ele também é ansioso, achava que me tinha passado a ansiedade dele.
Comecei a ter consultas todas as semanas para ir conversar, também tinha psiquiatra às vezes para me receitar uns ansiolíticos, também tava na dietista para me ajudar a ganhar peso, também tinha um PT no ginásio porque queria ficar fit e tinha explicações de matemática e português.
No início atrofiei-me um bocado com aquilo, ia lá para ter a consulta, mas era eu que tinha de falar, não era para me dizerem como fazer. Das primeiras vezes saí de lá pior do que entre, depois percebi que não tinha nada a ver com o psicólogo, eram cenas que eu tinha em mim e quando ia lá essas cenas vinham para fora.
O meu pai tem uma empresa, tem 50 pessoas a trabalhar para ele e tem sempre imenso trabalho para fazer, mesmo em casa tá sempre ao telefone, a mandar mails, a queixar-se que falta isto e aquilo. A minha mãe é investigadora, também trabalha imenso. Eles não me põem pressão em cima, mas eu vejo-os, sempre os vi e acho que criei esta ideia que é assim que se faz. Trabalha-se muito, anda-se sempre a correr, falhar é um desastre que vai custar o emprego a alguém, vai fazer com que alguém não tenha dinheiro para dar comida aos filhos, etc. Ya, é estúpido, eu sei, mas olha é assim, tinha isto lá na cabeça.
Só que eu não tenho aquelas coisas todas para fazer, por isso fui arranjando e acabei por encher o meu horário com 500 mil actividades e consultas. Só sabia que queria ter sucesso.
Houve uma miúda que me filmou na galhofa com os meus amigos, távamos a dançar, e pôs no insta e no tik tok. Andei 2 semanas com toda a gente a gozar comigo e mandar-me mensagens parvas #dançarino. Fiquei furioso, envergonhado, sei lá. Depois meti na cabeça que ia para o ginásio ganhar corpo, ia ficar fit e depois no verão ia ter um corpo fixe para o insta e o pessoal ia-se esquecer disso.
Depois quando pensava que podia não conseguir esse corpo comecei a ficar ansioso, com medo, comecei a ter o PT e isso não chegou por isso fui para a nutricionista. Bue cenas, pronto.
Nas consultas de psicologia chateei-me bue vezes com o psicólogo porque ele não me dizia como fazer para me motivar mais, em vez disso fazia-me perguntas e eu ficava sem vontade de treinar.
Mas depois começou a fazer sentido, comecei a tentar responder às perguntas e fiquei a perceber que não sabia responder e era isso que me deixava triste. Sim, aprendi a perceber que tava triste. Comecei a perceber que me sentia perdido e que por isso agarrava-me a estes objectivos, ter o sixpack, criar uma imagem fixe de mim para os outros, tirar boas notas para ir para a faculdade no estrangeiro e fugir disto tudo.
Andei a sentir-me muito triste uns tempos quando percebi isto, que tava à nora, que não sabia nada, nem quem é que eu era. Mas quando a tristeza começou a passar comecei a perceber que podia fazer perguntas, a mim, aos outros, aos meus pais. Comecei a perceber que eu não queria ter nada a ver com a vida do meu pai ou da minha mãe e que tava farto deles tarem sempre a trabalhar e a stressar à minha frente e depois a mandarem vir comigo só porque eu passava muito tempo com o telemóvel.
Começámos a falar, criámos regras em casa. Depois das 20:00 eles não podiam falar de trabalho e os telemóveis ficavam todos com o wireless desligado até depois do jantar. Continuei no ginásio, mas menos tempos, deixei o PT porque já não precisava de ganhar músculo para ontem. Deixei a nutricionista pelo mesmo motivo, acabei por já não precisar da medicação do psiquiatra e daqui por pouco tempo também devo parar com as consultas no psicólogo. Tivemos a falar e concordámos que agora, depois de 1 ano e tal de consultas, eu tava a sentir-me mais capaz de lidar com as coisas sozinho. Daqui por mais tempo posso voltar, mas quero descobrir as coisas por mim agora. A diferença é que agora levo coisas comigo para me ajudar, levo a vontade de fazer perguntas, levo a calma de saber que as respostas não têm de me agradar para serem verdadeiras, vou tranquilo sabendo que não sei. Até fui falar com a miúda que me filmou, contei-lhe o que tinha passado por causa da partilha dela e ela pediu-me desculpa, disse que não fez por mal, que não sabia que tinha sido tão mau.
Sinto que agora, em vez de estar a tentar fechar e resolver assuntos, quero abri-los, quero saber mais, mas não preciso de saber e ser tudo já hoje!
Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.