Uma história sobre destruir tudo aquilo que se ama

 

Já alguma vez tiveste uma amiga que fosse uma cabra? Azeda, rancorosa, zangada, com um sorriso na cara a dizer-se boa pessoa?

Dizem-me para não ser tão autocrítica, mas eu era essa pessoa.

Não sabia que era, claro que não. Eu sofria de uma grande mal-estar, eu queria imenso divertir-me, soltar-me e aproveitar a vida a cada momento, mas… olha, acontecia que um dia ou uma noite que começasse bem, acabava sempre num tom negativo, cansativo, sentindo-me insatisfeita.

Aos 21 anos senti-me perdida, eu ia ao ginásio, tinha o corpo como queria, sempre que partilhava fotos, tinha centenas de likes, não passava despercebida. Mas quando eu arranjava namorado, aquilo acabava sempre mal. Eles afastavam-se de mim muito zangados comigo, irritados, não queriam saber mais de mim. Isso magoava-me sempre tanto! Mas parece que acontecia sempre.

O mesmo acontecia-me com amigos e amigas, tirando uma ou duas pessoas mais próximas, parecia que não conseguia manter-me perto das pessoas por muito tempo. Comecei a aperceber-me disso e a ficar aflita, não queria ficar sozinha, não queria ser alguém de quem os outros não gostam.

Eu sentia-me vazia, sem propósito, quando gostava de alguma coisa, fartava-me depressa, não me conseguia comprometer, parecia que não sabia gostar nem das pessoas, nem das coisas a sério.

Entrei na faculdade, não gostei do curso, entrei noutro, mesma coisa, fui trabalhar para pensar no que queria fazer, foi nessa altura que senti que me estava a deixar afundar num pântano, numa espécie de lodo imundo. Percebi que não ia conseguir sem ajuda.

Uma amiga minha falou-me de um psicólogo que tinha ajudado uma tia dela, fui a uma consulta. Se há uma coisa que fiz bem na vida, foi ir a essa primeira consulta. Foram 4 anos de consultas todas as semanas, mudou a minha vida.

É curioso, precisar assim de alguém que não conhecia a minha história, para conseguir perceber melhor o meu percurso de vida. Ouvi-me a contar as minhas experiências e emoções de uma maneira que não sabia ser capaz.

Então onde é que isto começa a correr mal para mim, a minha história?

Aos 10 anos o casamento dos meus pais terminou. Foi feio, já só discutiam, tavam sempre zangados um com o outro. Em casa havia sempre um ambiente pesado. O meu pai traiu a minha mãe, mas nunca pareceu arrependido, acho eu. Sei lá o que achar, eu era uma criança, metade do que me lembro desse tempo parece ser as coisas que a minha mãe dizia.

Eu e a minha mãe éramos muito próximas, muito amigas. Depois da separação eu quis ficar com ela. Ela quis ficar comigo. O meu pai queria estar presente, mas ao final de um ano de visitas a cada 15 dias, acho que ele se fartou das discussões com a minha mãe, mais os meus maus humores com ele. Deixei de o ver. Só no natal e aniversários. Ele refez a sua vida, tem outra família.

Eu na altura “comprei” a zanga da minha mãe e achei que foi melhor assim. Na terapia consegui perceber que aquilo me magoou muito, ser deixada pelo meu pai, magoou ainda mais porque hoje sei o quanto eu contribuí para isso, o quanto o afastei. Foi algures por essa altura que começou a crescer dentro da minha alma uma amargura doente.

Porquê se eu estava de acordo com aquilo?

Porque não estava, eu sabia lá no que me estava a meter, só queria apoiar a minha mãe. Ela nunca percebeu que não me devia arrastar para aquilo, nunca percebeu que falar mal dele à minha frente ia-me fazer mais mal do que as discussões deles.

Enfim, isso passou, mas enquanto o meu pai seguiu em frente com a vida, a minha mãe não. Dizia-me sempre que já me tinha a mim, não precisava de mais ninguém. Partilhava toda a sua vida comigo e com as minhas duas tias. No início foi bom, acho eu. Mas com o passar do tempo, eu fui crescendo, queria mais da vida e quanto mais eu queria viver, mais parecia que ela queria que eu parasse no tempo.

Falava imenso comigo, eu gostava de partilhar o meu dia-a-dia com ela, mas…, mas… ela começava sempre a falar mal das pessoas que eu conhecia. Punha defeito a todas as minhas amigas, amigos, namorados… e eu, mais ou menos concordava para lhe fazer a vontade e depois arranjava forma de estragar essas amizades.

Ela tinha sido a pessoa mais importante da minha vida quando não havia mais ninguém. Mas hoje não sei se fui eu que me senti assim ou ela. Eu sabia que ela ficava muito triste e sozinha quando eu não estava por perto. Sentia-me culpada e tentava conciliar as minhas vontades com a pena que sentia dela. Só não percebi é que essa forma de estar, esses hábitos, essa culpa, infiltraram-se em mim, comecei a SER assim. A estragar amizades, a detestar tudo, a intoxicar as pessoas à minha volta, a não conseguir gostar de nada porque se gostasse de alguma coisa, ia afastar-me da minha mãe. A minha pobre coitada mãezinha que não soube viver a sua própria vida e por isso acabou por hipotecar a minha!!

A coisa mais importante que percebi em terapia foi que estava furiosa, zangada, para além de qualquer outra zanga, com ela. Uma fúria incandescente que iria arder para sempre, viesse a água que viesse. Era assim que me sentia. Eu tinha destruído tanta coisa para lhe “fazer a vontade”!! Abdiquei de tanta coisa para não a deixar sozinha, aceitei tantas críticas aos meus amigos só para não a contrariar. Aprendi a ver defeitos em tudo para não sentir que a traía de alguma forma.

Discutimos tantas vezes depois disso, ela começou a acusar-me de ser igual ao meu pai, que a deixou, que todos a maltratam. Eu tentei explicar-me mil vezes e mais algumas, mas ela não quer ouvir, ela quer continuar naquele negrume, quer continuar a ser a “vítima” que destrói tudo à sua volta. Acredito que ela sofra com isto tudo, mas tive que me afastar pela minha sanidade.

Fui viver com umas amigas. Comecei a dar-me melhor com as pessoas. Comecei a identificar em mim quando eu ia começar a criticar, a destruir, consegui começar a travar-me. Foi tão libertador.

Comecei a ir ver o meu pai, íamos às vezes almoçar fora. Conversar, começámos a reparar os estragos. Ele não está rancoroso, isso surpreendeu-me. Ele aceitou há muitos anos que a minha mãe é como é, que não podia fazer mais nada. De facto, traiu-a, por vingança. Só se arrepende de me ter magoado. A grande tristeza que ele carregava era não ter uma relação comigo, depois de começarmos a falar ele disse que já se sentia em paz, que estava muito feliz por mim por estar a refazer a minha vida, a libertar-me daquele fado.

 

Há muito mais para dizer sobre a minha história, sobre as mil e uma coisas que aprendi sobre mim, mas a parte grande da história é esta. Cheguei ao final da minha terapia e senti-me finalmente na estaca zero, no início, mas desta vez sem uma bagagem pesada demais para eu conseguir andar. Senti-me finalmente livre para conseguir fazer escolhas minhas.

A minha mãe é quem é, vou gostar sempre dela, vou continuar a dar-me com ela, mas daqui para a frente sei com o que devo ter cuidado para não me deixar levar pela forma dela de estar na vida.

 

 

Nenhum Conto Clínico é uma reprodução total ou aproximada de uma história real. Esta personagem é fictícia, foi vagamente construída a partir de situações clínicas, mas não representa de forma alguma uma pessoa real nem reproduz uma história real. Em contexto clínico todos os casos são tratados com confidencialidade total.

Gostou?

Inscreva-se para receber os Contos Clínicos no seu email de cada vez que sair um Conto novo. Receberá também conteúdo exclusivo em cada Conto.

Se quiser falar connosco, se estiver à procura de ajuda para si ou para alguém, entre em contacto.

 

Michael Dickinson

Receba os nossos contos por email:

 

Junte-se à nossa newsletter para receber os Contos Clínicos no seu email, com conteúdo exclusivo, de cada vez que sair um Conto novo.

É gratuito, sem publicidade externa, serve para partilhar os Contos e assuntos relacionados.

 

Depois de se inscrever, caso não receba o email de confirmação, verifique se está no separador de SPAM ou lixo electrónico do seu email.

Mensagem enviada!